Artigo publicado no Público sobre o livro: "Angola: O Pincípio do Fim da URSS"
""URSS quase apoiou a FNLA e admitiu apostar em Savimbi"
Por João Manuel Rocha
A ideia de que a União Soviética (URSS) sempre esteve de alma e coração com
o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que assumiu o poder após a
independência, é falsa. No início dos anos 1960, Moscovo esteve prestes a
reconhecer a rival FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), o que só não
aconteceu devido à intervenção do líder comunista português, Álvaro Cunhal.
Já na época de Mikhail Gorbatchov, responsáveis de Moscovo viam com bons
olhos Jonas Savimbi e a sua UNITA (União Nacional para a Independência Total de
Angola) e o último líder soviético encorajou o diálogo com o Presidente
angolano, José Eduardo dos Santos, estava disposto a iniciar com os adversários
políticos. As novidades constam do livro Angola - O princípio do fim da União
Soviética, de José Milhazes, editado pela Nova Vega e ontem lançado em Lisboa.
Baseado em fontes russas, documentos, artigos e entrevistas, revela episódios
inéditos e mostra que não havia unanimidade em Moscovo sobre a intervenção na
ex-colónia portuguesa.
O quase reconhecimento da FNLA como "legítimo representante"
angolano chegou a ser ordenado pelo então líder soviético Nikita Krutchov, em
1963. O episódio revela "a confusão que reinava em Moscovo em relação à
sua política africana". Documentação citada indica que, paralelamente aos
contactos com o MPLA, a espionagem soviética procurou estabelecer laços com a
UPA (União dos Povos de Angola), antecessora da FNLA, e a UNITA. José Milhazes,
ex-correspondente do PÚBLICO em Moscovo, cita as memórias de Piotr Evsiukov, um
alto funcionário que, durante 15 anos, dirigiu os contactos com os movimentos
de libertação, segundo o qual, sem a intervenção de Cunhal, a URSS teria
reconhecido FNLA de Holden Roberto.
O apoio militar que se revelou fundamental para o MPLA em 1975 também não
se concretizou sem dúvidas de Moscovo. "Não havia unanimidade face à
intervenção das tropas cubanas em Angola e ao envolvimento da URSS",
escreveu Milhazes. A partir de testemunhos de responsáveis soviéticos, concluiu
que "Cuba decidiu intervir militarmente em Angola com ou sem autorização
de Moscovo" e que no terreno havia "sérias divergências" entre o
comando das tropas cubanas e os conselheiros soviéticos.
A boa impressão que Savimbi causou, em 1988, ao então ministro de Negócios
Estrangeiros de Moscovo, num encontro na ONU, fez com que a URSS tenha estado
"próxima de apostar em Jonas Savimbi", revela Milhazes. "Depois
do encontro de [Eduard] Chevarnadze com Savimbi, em Nova Iorque, em Moscovo
quase surgiram hesitações: em que apostar em Angola?", contou ao autor o
então embaixador em Luanda, Vladimir Kazimirov.
No mesmo ano, José Eduardo dos Santos encontrou-se com Gorbatchov e
informou-o de que ia conversar sobre a UNITA com o rei Hassan II, de Marrocos,
ao qual Savimbi teria admitido afastar-se, se isso contribuísse "para a
solução positiva do problema". No diálogo, relatado no livro, o actual
Presidente admitiu a integração de elementos da força inimiga no processo
político. "Não como militantes da UNITA, mas como particulares. Alguns
farão parte do Governo", disse.
Atritos graves
Outra das revelações do livro é o fuzilamento, em 1973, por ordem de
Agostinho Neto, de cinco adversários no MPLA, acusados de uma conjura em que
também estaria envolvido Daniel Chipenda, "número dois" da
organização. O facto desagradou aos soviéticos, tal como o acordo, assinado em
1972, para uma frente MPLA/FNLA onde Agostinho Neto teria aceite ser
"número dois". Os documentos citados revelam uma "desconfiança
mútua" entre os dirigentes de Moscovo e o primeiro Presidente angolano e
"indecisões na direcção política" sobre quem apoiar que se
prolongaram até muito perto da independência.
Os "atritos graves" com Neto levaram já diversos estudiosos a
considerar que os soviéticos incentivaram o então ministro do Interior, Nito
Alves, a liderar a contestação ao rumo do MPLA, numa acção que culminou com
milhares de mortos. Milhazes escreve que Neto não só acreditou nessa tese como
"foi de propósito a Moscovo pedir explicações" a Brejnev, então
secretário-geral soviético, e exigiu o afastamento de dirigentes da
representação militar em Luanda. O autor confirma que "os soviéticos depositavam
confiança" em Nito Alves, mas não conseguiu ser conclusivo sobre o seu
papel nesse episódio devido à dificuldade de acesso aos arquivos soviéticos e
ao silêncio e contradições dos entrevistados.
Já sobre os rumores de que Neto foi assassinado durante uma operação, em
1979, Milhazes diz que são "um disparate". "As autoridades
soviéticas não queriam que Agostinho Neto fosse operado em Moscovo, pois sabiam
do seu real estado de saúde, mas, por outro lado, não podiam recusar, para não
afectar a credibilidade do país", escreveu. O autor é também de opinião
que, sem esquecer o Afeganistão, a intervenção em Angola ajudou à queda da
URSS. "A estrutura soviética fica, do ponto de vista económico e até
militar, fortemente abalada."
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