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POEMAS DE NAMIBIANO FERREIRA

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27 de fevereiro de 2015

MARIA GRAZIELA

Publicado no Cultura nr. 76. 
Luanda, 16 de Fevereiro de 2015.



Maria Graziela

(Imagem Cultura - Jornal Angolano de Artes e Letras)


Poema que se encontra há muito na Alma para ser escrito mas como outros, aguardam um determinado momento especial para nascer... Onde tu estiveres Maria, minha irmã, que alguém te possa levar estas notícias... um beijo!

MARIA GRAZIELA

Para a minha irmã de criação que não sei viva ou morta.

Lembro o crespo sentir
da tua carapinha dura,
os teus olhos doces de gazela
o teu nome Maria Graziela,
os lábios pequenos, pétalas
suaves de uma flor inominável
e a tua pele, ébano-cetim
onde o sol deixava indelével
beijos cegos de luminosas esferas
sobre o relevo macio do teu rosto.

Maria, tu foste tu és tu serás
a minha irmã, a mana mais velha
a irmã que nunca tive tenho terei...

Foi logo no burburinho inicial
dos ferros e das armas de fogo
quando nos perdemos um do outro.
Disseram-me tinhas ido no Huambo
seguindo a militância dos dias
eu fiquei no Namibe... esperando
vi os karkamanos chegar e partir
porém, só tu nunca vieste...
se por acaso fores viva, ainda,
que o sol te beije por mim
todos os dias a todas as horas;
se já viveste teu komba, então
que os anjos celestes te beijem
e ponham por mim pequeninas
esferas de luz divina em teu rosto.

Tu és a mana mais velha...
a irmã que eu queria voltar a ter.


Namibiano Ferreira
23/03/2010

25 de fevereiro de 2015

COMO SE O MUNDO NÃO TIVESSE LESTE




Como Se o Mundo Não Tivesse Leste

(As Águas do Capembáua)

Em Abril chouveu bastante, últimas chuvas da estação. Os três primeiros meses de permanência de R na fazenda foram afanosamente preenchidos com a implantação de uma vedação de arame à volta da fazenda. R. acordava a meio da noite ainda, na barraca de zinco, ouvindo o Calembera às voltas com o fogo, para fazer café. Lavava a cara na bacia de esmalte, cá fora, aquecia as mãos no telheiro da cozinha, bebia a zurrapa e arrancava no jipe. Trezentos metros à frente, no acampamento, recolhia os tractoristas e ganhava a savana, antes do sol nascer, o carro descapotável e o vento a cortar a face.

Meses frios, Junho e Julho. As nuvens baixas, sempre, de cacimbo, e a humidade, à tarde, ventosa e agreste, do lado do mar.

Cento e trinta quilómetros de periferia. À frente um tractor, a abrir a picada. O pessoal, atrás, a fazer buracos, a implantar os postes, a estender o arame. O cheiro da terra, arranhada pelo bulldozer, e o imprevisto diário de sucessivos horizontes, extensos e novos.


Ruy Duarte de Carvalho, Como Se o Mundo Não Tivesse Leste

DOIS POEMAS DE MARIA A. DÁSKALOS

Maria Alexandre Dáskalos nasceu no Huambo em 1957. Fez os estudos primários e secundários nos Colégios Ateniense e São João de Cluny. Frequentou o ensino superior na ex-faculdade de Letras, no Lubango, vindo, posteriormente, a terminar a sua formação em História Contemporânea em Portugal. É considerada pelos críticos com uma “impressiva voz feminina na literatura angolana”. Actualmente, é jornalista na RDP África. Constam da sua obra os trabalhos poéticos Do Tempo Suspenso (1998), Lágrimas e Laranjas (2001) e Jardim das Delícias (2003 

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Os anjos choram.

Uma cidade caiu
e os homens perderam-se nos trilhos
das casas agora desabadas.
As mulheres de joelhos em cima do
nada

já não sabem rezar.

Os anjos choram
e o bálsamo de todas as
feridas
não chega até nós.


*

E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz — esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.

Os deuses não assistiram a isto.




Maria Alexandre Dáskalos

12 de fevereiro de 2015

DOIS POEMAS DE ARLINDO BARBEITOS


Oh flor da noite
onde todo o orvalho se perde

teus olhos
não são estrelas
não são colibris

teus olhos
são abismos imensos

onde na escuridão
todo um passado se esconde

teus olhos
são abismos imensos
onde na escuridão
todo um futuro se forma

oh flor da noite
onde todo o orvalho se perde

teus olhos
não são estrelas
não são colibris


       Arlindo Barbeitos  (Angola Angolê Angolema) 


***********************************************


no tempo
em que as pacaças entravam
                   pelos povoados
o vôo alvoraçado das perdizes
carregava sonhos
que
a mãozinha inerme de criança
feliz
agarrava ao lusco-fusco dos muxitos
no tempo
em que as pacaças entravam
                   pelos povoados

                  Arlindo Barbeitos (Na leveza do luar crescente)

8 de fevereiro de 2015

O INFERNO E A MORTE NA PALMA DA MÃO






O inferno e a morte na palma da mão
ou a mirabolante estória de Pedro Francisco,
sobrevivente de todas as batalhas na cidade do Huambo,
contada por ele próprio em tempos de paz

Caçar ratos e lagartixas com a tchifuta, quem acredita?
Eu procurava crateras. Bomba que cai não acerta no buraco onde já explodiu outra bomba. Isso a gente aprende, se sobreviveu e fica de atenção com a vida.
Morrer – quem quer morrer, ou ser só baicado à toa?!
Então, eu corria logo-logo para lá, onde tinha acabado de explodir um obus. Às veces, um míssil atrás do outro – horas e mortes seguidas.
Choviam tempestades diluvianas de bombas. Tanques de guerra chagavam e entravam pelos escombros da cidade adentro, disparando sempre, uma gincana de posse e de espaço. Rajadas de metralhadora, tiros de canhão, morteiros, bazucas. O inferno e a morte na palma da mão.
O céu desaparecia do azul da manhã, eclipsava-se. E era a terra, em repuxo, a sair e a ser cuspida da Terra, pelas entranhas. Com suas pedras, suas árvores desde a raiz. Pedaços de ferro das carcaças das bombas e dos tanques fulminados. Tudo pelos ares, como se fosse a lava de um imenso vulcão. De centenas, de milhares de vulcões entrando em actividade ao mesmo tempo – tempo irrespirável, e sem medida.
Sangue de gente ou de animal. Telhados de casas, paredes, restos de portas e janelas. Pedaços de corpos, vísceras, braços e pernas desmembrados – tudo isso caía, depois, na cabeça da gente. Tudo isso caía em cima dos mortos – e nenhum morto era um morto completo, reconhecível. Só pedaços desencontrados da sua própria alma.
Estar na guerra e fugir da guerra é estar e ser sozinho. Ninguém pode carregar família atrás. Ninguém pode juntar e fugir com a família.
Para onde? A que horas?
A familia, na guerra, acabou. Família, na guerra, é só a tua sorte. A sorte de cada um, sozinho, fugindo para lado nenhum. Ou deixando-se ficar em lugar que não existe.
Eu escavava a medida do meu corpo deitado. A terra era quente, estrondada pela morte. Os bolsos rotos da roupa esfarrapada cheios de pedras para a tchifuta. Uma vara para escavar a terra, fazer colchão no fundo das crateras como se fosse já a minha sepultura.
Eu queria ser enterrado, se morresse. Se me matassem. Isso, eu queria. Custava aceitar ser comido pela onça, ser comido pelo leão, pela hiena ou pleos mabecos, que agora vinham de noite à cidade comer os nossos mortos. Os nossos mortos, que as bombas e a guerra não deicavam sepultar.
As pessoas olhavam alucinadas para a carne desses mortos, e pergutavam:
-Você já comeu alguma vez carne humana?
E salivavam. Juro que sim. Cresica-nos água na boca.
Eu vi os cães comerem os seus antigos donos – homens, mulheres e crianças, com quem antes brincaram e lhes deram de comer, alimentavam-nos agora com a carne do seu próprio corpo. Eu vi.
Alguém acredita?
Nesta guerra, só os cães engordaram. E a gente, quando já não pode mais e aparece um cão assim desprevenido, a gente mata. E come.
Devora-o!
Eu já assisti á morte de pessoas, sem nada poder fazer para as salvar, porque não tiveram forças sequer para acender a fogueira e esperar o tempo de cozer ou assar um pedaço de cão. E já vi gente comer carne de cão completamente crua, ratos, lagartixas, sem mais nada. Eu próprio já o fiz.
Sal para temperar um pouco a carne? Isso é um luxo que a gente não pode nem sonhar. Nem sal, nem muitas vezes água para beber, ou cozer um pouco de capim.
-A gente, agora – eu falei uma vez para a minha falecida mulher -, come a carne dos nossos parentes e dos nossos amigos e familiares na carne dos cães que se tornaram o nosso único alimento.
Nem pássaros passam mais nestes céus, depois das bombas. Nem pássaros. Essa guerra também lhes roubou as árvores de poisar e fazer os ninhos. E não há nada para eles comerem, aqui – nenhuma semente sobre a terra calvinada, nenhum fruto. Só abutre e milhafre, de quando em vez, sobre os cadáveres. Só essas aves, que nem pássaros são.
Gatos? É carne que a gente já não prova faz tempo. Muitos anos, para falar a mais pura verdade.
E até os ratos, aquelas ratazanas luzidias e contentes, saindo dos escombros e das crateras, que a gente fuzilava de tchifuta e nos davam um pouco de proteínas, tambiém esses se exilaram das nossa barrigas inchadas, desnutridas.
Carne de cobra, sapo ou lagartixa? Muito pouca, também. Quase nada. Como os grilos e os gafanhotos – eles próprios: deslocados de guerra.
Um dia, deitado no meu colchão-sepultura, no fundo da cratera ainda fumegante das últimas bombas, vi uma jibóia em trânsito. Passou a dois ou três metros de mim, e eu, sem faca nem catana: só um pau, uma vara para escavar a terra.
E a tchifuta, sempre engatilhada para disparar.
Acreditei que tinha chegado a minha hora mais fodida.
Esqueci as bombas, as rajadas de metralhadora, os disparos dos canhões e dos tanques, tudo a disparar e a cair ao mesmo tempo, e me levantei de um pulo, apontando a tchifuta à cabeça da jibóia.
Reparei que ela estava com tanta fome quanto eu, boa para ser morta e devorada com a pele e tudo.
Ou ela, ou eu – pensei.
Mas, porra, ser comido vivo por uma jibóia, ao fim de quase vinte anos a conseguir sobreviver na guerra, com toda a família morta ou deslocada, família perdida sei lá por onde?!
-Não dá, caralho! – gritei a plenos pulmões contra todas as bombas e todo o pavor da morte. – Vou-te matar, filha da puta! Eu não vou morrer engolido por uma jibóia, caralho? Não vou!!!
E atirei a pedra que tinha na tchifuta em direcção da cabeça dela, com o resto de todas as forças que ainda me restavam.
Até hoje, eu estou para saber se foi a pedra que lhe acertou, e a fez fugir, ou se foram os meus gritos e movimentos alucinados que a assustaram. O que eu sei é que ela se escapuliu de mim, e bazou, para se ir empanturrar de algum morto ali perto, onde foi encontrada a jibóiar, feliz da vida.
Alguém a matou à paulada na cabeça. Depois, foi estendida de costas no chão, aberta da cabeça à ponta da cauda para se lhe retirar da barriga o cadáver que ela jibíava, e finalmente devorada, com a pele devidamente estaladiça e tudo, num dos churrascos mais festivos desses tempos malditos.



Zetho Cunha Gonçalves 

4 de fevereiro de 2015

O PERFUME DAS CHUVAS


Para Midori, a minha neta!
Que faz hoje 4 anos.

Quase no final das chuvas e eu choro os desbarulhos da saudade das chuvas futuras que hão-de vir depois do comprido cacimbo.

Em África, as chuvas recriam a vida como se caissem no primeiro dia do Génesis.  A cada ano, quando tamborilam as primeiras chuvas, há uma musicalidade mística que habita a alma das gentes. As chuvas trazem um sentido virgem e puro como se o Mundo  acabasse de ser inventado.

Aqui, na Europa, as chuvas são simplesmente chuvas, água sem alma, caindo morta e sem um sentido profético de renovação. Não há aquele odor vivo, incaracterístico das chuvas a beijar o chão seco e quente no início de cada estação. A chuva não casa com a terra.

Em África, quando o sémen  dos Deuses chove sobre a terra,  liberta-se um perfume fresco e telúrico de fartura cozinhada que se come, que se bebe e se respira como se cada pessoa fosse moldada no barro húmido da terra.

Namibiano Ferreira

3 de fevereiro de 2015

CANTO AS VEIAS



a. as cores da terra

fomentava sementes da concórdia
hinos à longitude. cantava
veias ateadas no ventre
içava o sangue das bandeiras
rumo às violetas dissimulando
um mundo ardido na cor rubra
dos velhos panos.

b. o hino nacional

da língua orvalhada
um som ressalta
o sangue nacional.
tomo-lhe o fio arvora
palavra em parto.

e são já as sílabas
um pergaminho do
corpo cantado na
povoação.



João Tala