Foto: Jorge Coelho Ferreira

Ondjira - A Rota do Sul (o livro - compre aqui)

Ondjira - A Rota do Sul (o livro - compre aqui)
Click imagem!

POEMAS DE NAMIBIANO FERREIRA

POEMAS DE NAMIBIANO FERREIRA
Click na imagem!

4 de junho de 2014

O KANE-WIA

Como havia prometido na postagem anterior, hoje apresento o Kane-Wia, um outro morro do Namibe. Bem no interior, próximo da localidade do Virei, existe um morro a quem os Ovakuvale (Mukubais) chamam de Kane-Wia. É um lugar que povoa o imaginário sobrenatural da minha infância... não conheço o lugar mas depois que vos traduzir o nome do morrro em português, mesmo os menos descrentes, vão pensar duas vezes se lá querem ir.


Kane-Wia é o Morro “quem sobe não volta” ou “ quem o subir não volta” e a verdade é que, o Kane-Wia, é um acidente geográfico pouco conhecido e mesmo deixado á sua sorte. Se pedirem a um homem Omukuvale para ele vos acompanhar como guia, ele prontamente recusará, nem que o pagamento sejam manadas de bois, já que ouro e dinheiro, são coisas sem valor para um homem Mukubal. O Kane-Wia é tabu para os Ovakuvale: é kane-wia (quem o sobe não volta a descer, desaparece, faz uafa, morre). Portanto, o Kane-Wia vivia sossegado e inexplorado, uma espécie de montanha sagrada onde Deus dorme e, por esse motivo, interdita ao comum dos mortais.

Em 1937, um eminente biólogo da Universidade de Coimbra, Dr. Luís Wittnich Carrisso, veio até ao Namibe para estudar a flora local e como homem racional e de ciência, resolveu contrariar a crença subindo o Kane-Wia. Seja por mera coincidência ou por outra estranha razão o grande cientista português, embora socorrido pelo seu companheiro, veio a sucumbir em pleno deserto, a cerca de 80 km da cidade de Moçâmedes (actual Namibe). Nesse mesmo local foi, posteriormente, erguida uma lápide com a seguinte inscrição: “Dr. L. W. Carrisso XIV-VI-MCMXXXVII”.

Namibiano Ferreira


Há falta de imagem do Kane-Wia, ficam as Montanhas de Tchamalinde no Namibe


 Para terminar, um poema da minha autoria e inspirado no Kane-Wia mas para uma outra realidade... agora, o mwata já não volta. 
Este poema (anterior a 1998) faz parte de um poemário intitulado “No Vento e No Tempo”, cujos poemas não têm título mas são numerados.




QUE SUBA O MWATA O KANE-WIA

O tempo arrasta garroa
como se fosse um vento fétido
expirado por deuses amnésicos.
Na noite, oximalankas e mabecos,
dão risadas sob o luar da Morte.
O tempo traz garroa no ventre
e uma aridez uterina ondula despertando
o Kazumbi ancestral que vem dizendo:

– Que suba o mwata o Kane-Wia,
Depressa-depressa!
– Que suba o mwata o Kane-Wia,
a montanha quem sobe não volta
para nunca mais impedir a chuva
sobre a terra, roseira bela!

– Que suba o mwata o Kane-Wia,
deixando açucenas florindo
nos ombros dos caminhos e sobre a terra,
roseira bela, a chuva crepitando
purgando e redimindo nosso corpo
desalmado e sem sentido.
– Que suba o mwata o Kane-Wia...


Namibiano Ferreira (in No Vento e No Tempo)


Mwata – senhor, chefe, líder.
Oximalankas – hienas.
Mabeco – cão selvagem.

3 de junho de 2014

TCHITUNDU-HULU



A cerca de 130 km Leste da cidade do Namibe existe, na região de Kapolopopo, um morro que tem um nome verdadeiramente poético. Trata-se do Morro de Tchitundu-Hulu, que traduzido para português se chama Morro Sagrado do Céu. Neste lugar, existe uma gruta também conhecida por gruta Sagrada do Céu ou, gruta Sagrada dos Mukuísses. Porque os Mukuíssos, Mukuísses ou Ovakwissi, um povo do deserto, não bantu, a tem como lugar de veneração.
Tchitundu-Hulu reveste-se de uma grande importância para a História e a Cultura angolanas porque nelas existem gravuras rupestres pintadas em cavernas e ao ar livre. As gravuras são, na maior parte, círculos que se encontram, por vezes, ligados por um traço, existem também muitas figuras de animais e astros. O Sol (o famoso sol de Tchitundo-Hulu, de círculos concêntricos e com seus raios estilizados) e constelações, onde se podem distinguir Oríon e o Cruzeiro do Sul. Ninguém sabe ao certo quem foi o povo que fez estas gravuras, pensam os antropologistas que terão sido, muito provavelmente, os ancestrais do povo !khoisan e que em Angola se chamam Ovassekele ou Mukankalas (vulgo bosquímanes). Dizem os especialistas que estas gravuras rupestres têm mais de 30.000 anos.
No deserto do Namibe, em território angolano, existem outras construções pré-históricas, como círculos de pedra que lembram os monumentos megalíticos da Europa e também mais pinturas rupestres. Infelizmente estes lugares encontram-se pouco ou nada estudados e ameçados pelas amplitudes térmicas entre dia e noite que fazem estalar o interior das grutas, para além da actividade humana.


Tchitundu-Hulu 1

 Deixo  um momento de poesia, um poema que escrevi quando passei por Tchitundu-Hulu....


 QUANDO PASSEI POR TCHITUNDU-HULU


Quando passei por Tchitundu-Hulu 
tinham acabado de gravar as paredes.
Terminados os rituais de consagração, cá fora,
o povo mágico dançava, comemorando alegremente.
Depois, o povo mágico partiu subindo o Kane-Wia*
– a montanha sagrada onde Deus dorme – 
e não mais voltou.


Entretanto, diariamente, sucederam aos dias
o veludo negro das noites
e, anualmente, os cacimbos trouxeram as chuvas 
e as chuvas devolveram os cacimbos... sopraram ventos 
ventando num dorido e constante lamento.
Houve chuvas ansiadas, esperadas em vão 
no desejo árido do umbigo dos deuses e o Tempo, 
vento de nada, passou leve e mangonheiro 
inspirando o Infinito... expirando o Esquecimento
sobre as gravuras sagradas acabadas de gravar 
quando por lá tinha passado naquele dia.


Tchitundu-Hulu rodopiou na bruma esquecida 
no regaço do Tempo, encoberto e misterioso...


Um dia, no espreguiçar sem depressas, o Tempo 
acordou os Kwissis e eles vieram e sem entender 
ou perguntar o quer que fosse acreditaram
e adoraram a Gruta do Morro Sagrado do Céu 
fazendo de Tchitundu-Hulu o mistério de sua Fé.


Namibiano Ferreira (In No Vento e No Tempo)

* O Kane-Wia é um outro morro do Namibe com uma história muito peculiar que brevemente trarei aqui para vocês conhecerem.



Tchitundu-Hulu 2








Sobre estas pinturas rupestres, existe um livro bilingue (portugues e frances) da autoria de Manuel Gutierrez: Arte Rupestre em Angola - Província do Namibe ISBN 978-284280-150-2

1 de junho de 2014

ANTÓNIO, O NEGRO (OU UM ANGOLANO NAS AMÉRICAS)

O angolano que começou a escravatura nos Estados Unidos

Para muitos norte-americanos, em especial os do Sul, a palavra Angola é sinónimo de uma das prisões com a pior das famas, conhecida pela «Alcatraz do Sul», construída em 1901. Considerada uma das prisões de máxima segurança dos Estados Unidos, a Penitenciária Estadual da Luisiana foi construída nos terrenos de uma antiga plantação para onde vinham trabalhar escravos oriundos dessa região africana.

Mas a mesma palavra Angola serviu para batizar uma outra plantação, no norte do país, no estado do Maryland, em memória daquele que terá sido o primeiro escravo angolano a pisar terras da América do Norte, no século XVII.

Pode-se dizer que António, ou Anthony Johnson, entrou nas páginas da história dos Estados Unidos graças à sua tenaz personalidade, extraordinária capacidade de trabalho e uma vontade inequívoca em trilhar e vencer todas as curvas e as valas da vida. Mas o acaso acabaria por dar o empurrão definitivo nesse sentido.

Jamestown


António, dito O Negro

Em 1619, um jovem foi capturado por traficantes de escravos na região atual de Angola e vendido a um comerciante ao serviço da Virginia Company, na primeira colónia inglesa na América. António, O Negro, como era conhecido, depois de chegar a Jamestown, a bordo de um barco holandês, foi vendido a Edward Bennett, um plantador de tabaco inglês, para trabalhar na sua propriedade, Warresquioake.

Segundo registos da época, em especial da House of Burgess, este terá sido o primeiro grupo de africanos a chegar à Virgínia, como registou o colono John Rolfe: «Por volta de Agosto último (1619) chegou um holandês que nos vendeu vinte negros». Para além de António – o único que traz a referência a Angola – chegaram no mesmo grupo uma mulher chamada Ângela e um homem, John Pedro, de trinta anos, o que indica que também poderão ter a mesma origem.

O facto de António e os restantes africanos terem nomes cristãos poderá ser um indicador de terem sido comprados na cidade de São Paulo de Luanda, onde terão permanecido algum tempo. Os escravos vendidos na cidade para as Américas embarcavam na baía e muitos eram capturados com a ajuda de naturais de Angola, mestiços e mulatos, como retratou o escritor Pepetela no seu último livro A Sul. O Sombreiro.

Este era ainda o tempo dos primeiros colonos de uma América virgem e inocente, onde os seus poucos habitantes – europeus, índios, judeus, negros – viviam pacificamente integrados na comunidade de Jamestown, fundada em 1607, na então Colónia da Virgínia, regida por regras e leis muito próximas da tão desejada Terra Prometida. Para se ter uma ideia, o censo de 1622-25 regista vinte e três africanos a viver em Jamestown, descritos como criados e não como escravos.

Antes de 1654, os africanos dos territórios da Virgínia e Maryland tinham um estatuto mais próximo de trabalhadores contratados do que de escravos; estavam ligados por um contrato com um período máximo de 12 anos, no final do qual recebiam terras e utensílios agrícolas para se estabelecerem por sua conta – onde e como quisessem.

A preocupação principal da coroa inglesa era conseguir gente disponível para desbravar e povoar as vastas terras recentemente ocupadas e estabelecer o máximo de colónias ao longo da costa leste do território americano.

António revelou-se um excelente trabalhador na plantação de Edward Bennett e este não demorou muito a afeiçoar-se ao jovem recém-chegado. Como prova da sua estima, Edward permitiu-lhe trabalhar um pequeno terreno junto das suas terras, onde António começou também a cultivar tabaco, milho e a criar algumas cabeças de gado, embora continuasse vinculado ao inglês pelo contrato de trabalho.

Em março de 1622, a plantação de Bennett foi atacada por índios e 52 pessoas foram massacradas. Apenas António e mais quatro pessoas sobreviveram ao ataque.

Nesse mesmo ano, uma nova leva de africanos chegou à Virgínia no navio Margaret e António apaixonou-se por Mary, a única escrava dessa leva trazida para trabalhar na plantação. António e Mary casaram-se e tiveram quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas, numa união próspera que duraria quarenta anos.

Documentos da época dizem que António não terá chegado a cumprir o contrato até ao fim, tendo ganho a sua liberdade muito antes dos 12 anos estipulados e comprado a liberdade da sua mulher. A primeira coisa que fez foi mudar o nome para Anthony Johnson, adotando um novo apelido, sinal de que não era mais propriedade de ninguém.

Depois de ganhar a sua liberdade, a família mudou-se para o interior da Virgínia, para uma pequena quinta onde começou a criar gado.

De acordo com registos da época, Anthony e Mary eram respeitados na sua comunidade e reconhecidos pelo seu «trabalho árduo e pelos serviços prestados», como ficou registado na declaração de um tribunal, a propósito de uma disputa de terras. Ao longo dos anos, a ambição de Anthony não parou e o angolano rapidamente se tornou um grande proprietário, ao adquirir 125 hectares de terras para si e para os seus filhos.

A história da vida de António teria sido igual à de milhões de outros negros levados para as Américas não fosse uma teimosia sua levada até ao limite.



Anthony compra Casor

Cada vez mais próspero, Anthony decidiu contratar cinco trabalhadores e um escravo africano, de nome John Casor, para trabalhar nas suas terras. Expirado o prazo contratual, Anthony recusou libertar Casor, alegando que o tinha comprado e não contratado. Este decidiu então pedir ajuda a um agricultor branco local, chamado Robert Parker, reivindicando os seus direitos.

Revoltado, Parker decidiu dar apoio e proteção a Casor. O processo contra Casor parecia não vir a ter um desfecho favorável e Anthony decidiu mudar de estratégia: deu entrada no tribunal com um processo contra Parker, alegando que este mantinha ilegalmente em seu poder e ao seu serviço um trabalhador que ainda estava vinculado a ele, Anthony. Casor, por sua vez, tentava provar em tribunal que era apenas um trabalhador contratado e não um escravo. Os juízes coloniais ficaram sem saber como resolver o caso. Pela primeira vez os tribunais da Colónia da Virgínia viam-se confrontados com uma situação em que uma pessoa reivindicava para si outra pessoa como propriedade sua.

O tribunal decidiu a favor de Parker, libertando Casor, mas apenas temporariamente, pois de imediato reviu a sua decisão e declarou que Casor deveria retornar ao seu antigo dono, Anthony Johnson. E sendo Casor propriedade de Anthony Johnson estava ao seu serviço para o resto da vida, como veio, de facto, a acontecer.

Um precedente histórico

Para os historiadores norte-americanos, com esta decisão do tribunal, Anthony Johnson ou António, o angolano, tornava-se o primeiro proprietário de escravos da América. O tribunal abria assim um histórico precedente: Casor tornava-se no primeiro indivíduo reconhecido pelas autoridades na América como escravo, na Colónia da Virgínia, o que traria consequências terríveis para os africanos nos três séculos seguintes.
 

Em 1653, um incêndio de enormes proporções destruiu a maior parte da plantação da família de Johnson, obrigando-o a pedir ao tribunal uma isenção no pagamento de impostos, pois mal tinham para viver. Dois anos mais tarde, talvez fugindo aos vizinhos brancos hostis que lhe cobiçavam as terras, Anthony e Mary, juntamente com os filhos John e Richard, mudaram-se para Somerset County, em Maryland, a norte.

Aqui, na região ainda pouco povoada de Wicomico Creek, Anthony e a família chegaram com 14 cabeças de gado e oito ovelhas. Arrendaram uma fazenda com 120 hectares (Tonies Vineyard), para cultivar tabaco, onde Anthony viveria até à sua morte, em 1670. A viúva Mary viveria ainda por mais dois anos.

Mas apesar de ser um homem inteligente, trabalhador e dinâmico, aos olhos dos outros Anthony nunca deixou de ser o que era: um homem negro. Logo após a sua morte, a maior parte das suas terras foram anexadas por um agricultor branco, aproveitando uma decisão de um tribunal local que dizia que «por ser negro, Anthony Johnson não era considerado um cidadão da Colónia da Virgínia», e assim as suas terras passavam para as mãos da coroa inglesa.

Em 1677, John Johnson Jr., neto de Anthony e Mary, herdou os últimos 22 hectares do que restava das terras de Anthony e batizou a fazenda de «Angola», em memória à terra ancestral do avô, António. John Jr. não teve filhos e depois de 1730 os registos da família de Anthony Johnson desaparecem por completo dos arquivos.

Contrariando a ideia do proprietário de escravos negros ser exclusivamente branco, o precedente aberto por Johnson – um negro proprietário de escravo negro –, haveria de fazer alguma «escola» em alguns estados escravocratas do sul dos Estados Unidos. A maior parte dos negros que escravizaram os seus irmãos eram, na verdade, mulatos filhos dos proprietários brancos nas grandes plantações.

Segundo um censo de 1830, a maioria dos negros livres proprietários de escravos vivia no Estado do Luisiana e eram plantadores de cana-de-açúcar. Ao todo, estes antigos escravos chegavam a possuir mais de 10 mil escravos nos estados da Luisiana, Maryland, Carolina do Sul e Virgínia.



publicado originalmente na revista Africa 21, Março 2013


por Joaquim Arena 

Retirado da Revista Buala