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POEMAS DE NAMIBIANO FERREIRA

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21 de março de 2015

SIM EM QUALQUER POEMA (DIA MUNDIAL DA POESIA)

 


Apetece-me escrever um poema.

Um poema fechado dentro de si
para ser compreendido
apenas
pelos passarinhos que chilreiam lá fora
sobre as três árvores
da minha única paisagem;
para ser entendido
pela canção da seiva
circulante no verde das ervas
do caminho áspero da encosta;
e pelo brilho do sol
e pelo carácter integro dos homens.

Um poema que não sejam letras
mas sangue vivo
em artérias pulsáteis dum universo matemático
e sejam astros cintilantes
para calmas noites
de inversos chuvosos e frios
e seja lume para acolher as gazelas
que pastam inserguras
nos acolhedores campos da imensa vida;
amizade para corações odientos
motor impelindo o impossivel
para a realidade das horas;
cântico harmonioso para formosura dos homens.

Um poema
(ah! quem comparou a Africa a uma interrogação
cujo ponto é Madagáscar?)

Um poema solução
resolvendo a curva interrogativa da imagem
em linha recta de afirmação;
e a beleza das florestas virgens
a precisão da engrenagem da existência,
o som fantástico do trovejar sobre pedras,
os cataclismos fluviais
pendentes sobre as frágeis canoas do rio Zaire,
a obnubilação ansiosa das almas da penumbra,
o claro arrebol dos olhos dos homens.

Um poema traçado sobre aço
escrito com as flores da terra
e com os braços erguidos da podridão;
esculpido no amor

que exala a esperança daquele meu amigo
a esta hora com a tanga ensopada
no suor do seu dorso;
com as canções adocicadas do quissanje ao luar;
e as gargalhadas infantis para a minha amada;
com o calor simpático
do corpo sangrento dos homens.

Um poema fechado
- longo e imperceptível
em que amor e ódio entrelaçados
sejam a síntese da discordância
para ser cantado em todas as línguas
guiado pelo som da marimba e do piano;
ritmo de batuque enxertado sobre as valsas
da outra mocidade;
harmonia de xinguilamentos
sobre o bárbaro matraquear de máquinas de escrever,
grito aflitivo no vácuo
e a aspiração dos homens.

Mas não escreverei o poema

Em que subterrâneos circularia
o ar irrespirável da violência?
Nas cavernas dos teus pulmões
o caften das vielas sórdidas
do conformismo?
Ou na avidez dos quilométricos intestinos
dos chacais?
Ou nas cavidades prostituídas do coração
infame do esclavagismo?
Ou nas goelas
da desonestidade inconsciente?

Não escreverei o poema.

Escreverei cartas à minha amada
preencherei os espaços claros dos impressos
com letra impecável
e nos intervalos
cantarei canções afro-brasileiras.
Sonharei.
Sonharei com os olhos do amor
encarnados nas tuas maravilhosas mãos
de suavidade e ternura.
Sonharei com aqueles dias de que falavas
quando te referias à Primavera.
Sonharei contigo.

E com o prazer de beber gotas de orvalho
na relva
deitado ao teu lado,
ao Sol, - uma praia furiosa lá ao longe.
E ficará dentro de mim
A amargura de não escrever o poema
Ele há tantas amarguras!

Não escreverei o poema.

Direi simplesmente
que o colosso de certeza na humanidade do Universo
é inapagável
como o brilho das estrelas
como o amor dos teus olhos
como a força da harmonia dos braços
como a esperança no coração dos homens.
Inapagável
como a sensual beleza
da agilidade das feras sobre o campo
e do terror transmitido dos abismos.

Direi simplesmente sim!
Sempre sim
à honestidade dos homens
ao viço juvenil da sinfonia das árvores
ao odor inesquecível da natureza
que apaga os possíveis cheiros amargos.

Sim!
á interrogação mágica de Talamungongo
do Cunene ou do Maiombe;
ao sonoro cântico de ritmos subterrâneos
e dos chamamentos telúricos;
aos tambores
apelando paz para o fio da ancestralidade
esbatido além;
ao ponto interrogativo de Madagáscar.

Sim!
às solicitações místicas à musculatura dos membros
ao quente das fogueiras endeusadas
na lenha das sanzalas,
às expansões magnificas das faces
esculpidas no alegre sofrimento das quitandeiras
e no ritmo febril das sensações tropicais;
à identidade
com a filosofia do imbondeiro
ou com a condição dos homens,
ali onde o capim os afoga em confusão.

Sim!
à África-terra, à África-humana.

Direi sim
em qualquer poema.

E esperemos que a chuva pare
e deixe de molhar os chilreantes passarinhos
sobre as três árvores da minha única paisagem
e o desejo de escrever um poema.
Isso passa.

Agostinho Neto


In “CULTURA”, Sociedade Cultural de Angola, no 8. Luanda – 1959 

15 de março de 2015

BÚSSOLA

  Almada Negreiros


Para a Dinah:




Oriento-me no oriente
de teu corpo
esperando o sol
erguer-se fagueiro
no sorriso luminoso
candura de teu ventre
chana quente
aberta ao desejo
iluminado no muxito
de meus olhos
ondulantes.
 


Namibiano Ferreira

13 de março de 2015

O PORTUGUÊS TEM DE DIALOGAR

 Artigo de opinião de  Gociante Patissa, publicado no “Semanário Angolense” e no jornal “Público”





Falar do futuro do português, o considerado quinto idioma mais popular no mundo, é evidentemente um assunto vasto. Enquanto recolector de tradição oral, interessa-me olhar para a realidade angolana e abraçar a vertente sociolinguística, visto o valor da língua como património cultural imaterial. A propósito, há quem defenda a existência de um tal português angolano. Temos? Sobre isso continuaremos mais adiante.

Não havendo grandes estudos oficiais no que se refere a políticas linguísticas na Angola independente, a partir dos quais teríamos indicadores para avaliar eventuais êxitos ou desvios na sua aplicação, resta assumir que qualquer exercício de previsibilidade do uso do português é ainda mais complexo. E já sabemos que nem valem a pena incursões ao passado, conhecendo como conhecemos a história da chegada da língua, que era até há bem pouco menos de 40 anos instrumento de aniquilação identitária dos povos das então colónias portuguesas, a coberto de uma tal expansão da civilização europeia.

Adoptado o português como idioma oficial, que é inquestionavelmente a língua materna de milhares de angolanos, a questão passa a ser a forma como esta dialoga com os demais idiomas de matriz africana, entre Bantu e não Bantu, nomeadamente o cokwe, fiote, helelo, khoisan, kikongo, kimbundu, ngangela, nhaneka-nkumbi, umbundu, oxindonga, oxiwambo e vátwa. E se o leitor nos permite problematizar um pouco sob o axioma de que cada língua veicula uma cultura, a questão seria: que cultura veicula a língua portuguesa numa sociedade multi-étnica e linguística? Bem, é em nome da cultura, que é por vocação um fruto da partilha, que teremos de evitar radicalismos e complexos, sejam eles de inferioridade ou de superioridade, pois as sociedades são dinâmicas e o fenómeno linguístico é inerente à interação dos povos.

Quando falamos do diálogo que deve existir entre as línguas, é tendo precisamente em conta o cuidado necessário para que o status dado a uma língua, que geralmente corresponde a determinado grupo social, não represente a subjugação de outros. Em tempos, um notável intelectual desabafava pelo que interpretava como sendo um sinal da subalternização institucional das nossas línguas nacionais. Não lhe pareceria, pois, razoável a prática de haver sempre um tradutor para estrangeiros que falem à imprensa ou ao parlamento e, entretanto, quando chega a vez de anciãos e autoridades tradicionais, terem de o fazer num português em que por vezes mal se expressam e compreendem, com todo o desconforto que isso implica.

Como defendeu em 2003 a brasileira Eveli Sengafredo, na tese de pós-graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul: «A língua constitui-se das mesmas forças políticas, sociais e culturais que produziram as diversas civilizações e culturas do mundo. Ela ocupa uma crucial posição na interacção social, sendo um agente importantíssimo de transmissão de valores sociais e culturais».

Já existe o português angolano? Há quem defenda que sim, mesmo até com base na linguagem literária que incorpora cada vez mais termos e expressões tipicamente do nosso linguajar, como, por exemplo, «é maka grossa me apanhar a pata». Mas isto basta para legitimar a existência de uma variante angolana? Como caracterizar a pronúncia padrão dos locutores noticiosos, o sotaque europeu? O certo é que o português angolano não existe, tão-só porque não se estabeleceu uma norma própria, oficial.

O futuro do português, quanto a mim, passa por assumir de maneira integradora o seu papel de língua oficial relativamente às outras de matriz africana. Impõe-se um rigoroso trabalho de estudos linguísticos e antropológicos, de modo a valorizar a correcta grafia da toponímia e a essência proverbial dos nomes africanos. Insistir-se na substituição forçosa do «K» pelo «C», mesmo quando se trata de algo tão representativo como o rio Kwanza ou a província do Kwando-Kubango, pelo magro argumento das confusões por a língua oficial ser avessa às consoantes «K, W, Y», tão comuns nas línguas Bantu, só vai atrair ainda mais recalcamentos. O português tem de dialogar!

Gociante Patissa

Escritor e linguísta em Ciências da Educação. Texto originalmente publicado no jornal Semanário Angolense (Angola) a 28 de Junho de 2014 



11 de março de 2015

TEMPO


Perda a perda se constrói
a mágoa
como pedra a pedra se constrói
a nossa  casa
e o rio rola com águas
macias e pacientes
as pedras que hão-de ser seixos.



Namibiano Ferreira

10 de março de 2015

A REACÇÃO AO LIVRO: “Ascensão de Angola, da Guerra a Potência Regional”




O jornal britânico Financial Times apelidou este sábado que Angola é uma “cleptocracia” dominada por uma elite que ignora os problemas da população e que é aceite “como parte integrante do sistema ocidental”.
O artigo intitulado “Why the west loves a kleptocrat” (Por que o Ocidente adora um cleptocrata) analisa o livro Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War (Terra magnífica e pedinte: Angola Desde a Guerra Civil), do investigador Ricardo Soares de Oliveira, professor de Política Comparada na Universidade de Oxford.
O texto começa por argumentar que “mesmo para os padrões dos Estados petrolíferos, Angola é quase ridiculamente injusta”, afirmando que “os oligarcas deixam gorjetas de EUR 500 (USD 542) nos restaurantes da moda em Lisboa, enquanto cerca de uma em cada seis crianças angolanas morre antes de chegar aos cinco anos”.
“No entanto, esta cleptocracia com poucos estudos é aceite como parte integrante do sistema ocidental. Os expatriados fazem a economia angolana mexer. Os oligarcas angolanos habitam no luxo das escolas públicas britânicas, dos gestores de activos suíços, das lojas Hermès, etc”, lê-se.
soares-angola-final-webA publicação tem como base os dados apresentados por Ricardo Soares de Oliveira no seu segundo livro, que analisa o estado país desde 2002, com o fim da guerra, onde “algumas famílias de raça mista” passam a dominar o sector político e social. Os dirigentes pertencem “em grande parte a umas quantas famílias de raça mista da capital, Luanda, que considera os cerca de 21 milhões de angolanos negros do mato ou dos musseques pouco civilizados e tem pouco desejo de os educar”. O autor do livro garante que “os angolanos continuam a ser dos menos educados e das pessoas menos saudáveis ​​do mundo”. Facto que, segundo o livro, não incomoda o Governo.
“Os governantes contratam estrangeiros qualificados para praticamente todos os sectores principais da economia” e, “mesmo quando há a ilusão de um papel de Angola, as tarefas reais são realizadas pela KPMG, Ernst & Young, McKinsey, Deloitte bem como por outros fornecedores internacionais mais pequenos”.
“Por trás de cada magnata angolano há uma equipa de gestão maioritariamente portuguesa”, que não se preocupa com as consequências da sua gestão, por isso os estrangeiros são responsáveis pelo petróleo, “fazem luxuosos vestidos e constroem aeroportos sem sentido no meio do nada”, lê-se.
“Trabalhadores chineses constroem fábricas que, em seguida, não são utilizadas. Apenas dois sectores ocidentais estão mal representados em Angola: os meios de comunicação e as ONG. O regime não precisa deles”, continua o artigo.
Os governantes de Angola têm “uma ideia generalizada de que cada interlocutor é impulsionado pelo lucro e, portanto, as soluções, e as pessoas, podem ser comprados”. Partindo desse princípio, esses dirigente acumulam o lucro “nos bancos e gastam-no nos quadros, em cirurgias plásticas e em casas de praia, para além de acções de empresas, especialmente em Portugal”.
O texto do Financial Times conclui com uma referência à crise actual. “A elite fez a festa durante o crescimento do petróleo. O provável impacto no regime do colapso nos preços é pouco, porque se só se está a alimentar uma pequena percentagem do povo, USD 50 dólares chega e sobra”.



Magnificent beggar land_image


Luanda “has been partly re-Europeanized”, he writes. “Behind every Angolan tycoon there is a mostly Portuguese management team.” The expats enable an elite that is killing Angolan children by neglect. No matter: the western professional’s ethos is to do a professional job and not worry about much else. And so foreigners pump Angolan oil, make expensive dresses and build pointless airports in the middle of nowhere. An “Israeli defence outfit” guards a stretch of Angola’s border. Chinese workers build factories that then sit unused. Only two western sectors are barely present in Angola: the media and NGOs. The regime doesn’t need them.
The regime likes to remind expats that they are in Angola to make money and shut up. Hence the almost monthly ritual in which “glum-looking foreign workers” are deported live on TV, while the commentators debate “immigration and its impact on Angolan jobs and ‘national culture’” just like European pundits.
Almost all western governments happily shut up. They used at least to pretend to have a “democratisation agenda”: just give General X a few more years and you’ll really start seeing reforms etc. But in the past decade the west has virtually abandoned even democratic talk. This is the consequence of the Iraq war, China’s rise as a new friend to tyrants and the global economic crisis that has made us desperate for any deal, no matter how dirty. China doesn’t nag friends about human rights — and nor do we. In 2013, the UK declared Angola a “High Level Prosperity Partner”.
Angola’s rulers, says the book, have “a pervasive assumption that every interlocutor is driven by the profit motive and, therefore, that solutions, and people, can be bought”. This assumption is almost always correct. Foreigners merely chuckle in private about garish Angolan excess.
Angola’s elite “has spent the last decade converging with the material life and cultural signifiers of the global jet-setting class”, writes Soares de Oliveira. The happy few jet around western capitals, unhindered even by talk of travel bans or freezes on their bank accounts. We accept that Angola’s money is their personal property. Anyway, they stash it in our banks and spend it on our paintings, plastic surgery and holiday villas, plus stakes in our companies (especially in Portugal).


Retirado do Jornal britânico “Financial Times” de 6 de março de 2015

Na íntegra aqui: http://www.ft.com/cms/s/0/e8fe02d4-c2b1-11e4-a59c-00144feab7de.html#axzz3TyBuio6n se conseguir aceder a esta página fora do Reino Unido.

O CERCADO

Dedico esta postagem ao Fernando Ribeiro, um poema de Ana Paula Tavares, uma poética que ele muito aprecia.





De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado



Ana Paula Tavares  

9 de março de 2015

CRÓNICA DE REGINALDO SILVA NA REDE ANGOLA

cronica_reginaldo_O racismo de Deolinda RodriguesREGINALDO SILVA

O “racismo” de Deolinda Rodrigues

04.03.2015 • 00h00 • atualizado às 08h27

Se me fosse possível fazer alguma futurologia regressando ao passado para me colocar na primeira metade dos anos 60, não teria muitas dúvidas em admitir que Deolinda Rodrigues depois de Viriato da Cruz e Matias Miguéis, seria a primeira dissidente do MPLA a assumir a sua ruptura com a direcção de Agostinho Neto.
Esta convicção que não é de hoje nem de ontem, nasceu-me da leitura parcial do seu diário e outros documentos que o irmão Roberto de Almeida decidiu publicar em dois volumes entre 2003 e 2004 embora os originais já estivessem em sua posse há cerca de 30 anos.
Estamos a falar de “Deolinda Rodrigues- Diário de Um Exílio Sem Regresso” e “Deolinda Rodrigues- Cartas de Langidila e outros documentos”.
A ter em conta o seu explosivo conteúdo, o novel editor teve de facto necessidade de pensar muito e de repensar ainda mais, mas felizmente para a própria história que certamente já lhe agradeceu o gesto.
A decisão foi a melhor, evitando-se mais uma “queima de arquivos”. Chegou assim ao público um testemunho autêntico porque escrito na intimidade de quem se confessa para o papel, sem ter necessidade de prestar contas a ninguém, nem de ter conta os condicionamentos habituais de quem fala para uma plateia, seja ela qual for.
Uma edição feita sem mexer em nenhuma vírgula, como se costuma dizer, isto é, sem qualquer censura, o que em principio não seria possível durante o monopartidarismo, tempo em que Roberto de Almeida foi o mais atento e vigilante responsável editorial do regime, nas suas vestes de Secretário do MPLA-PT para a Esfera Ideológica.
O próprio editor reconheceu a “gravidade” da sua decisão ao escrever no prefácio que “talvez não agradem ao leitor as referências e observações feitas a respeito de alguns personagens, mas Deolinda era assim mesmo – doce e compreensiva mas também cáustica e dura, quando necessário, no contexto da época”.
Este ano decidi revisitar estes dois livros, aproveitando a passagem de mais uma um “Dia da OMA”, que é o 2 de Março, em homenagem à data em que Deolinda Rodrigues e suas 4 companheiras de infortúnio (Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paim e Teresa Afonso)foram presas em 1967 pela FNLA, tendo sido posteriormente assassinadas em condições que nunca foram completamente esclarecidas quanto suas reais motivações.
Na altura os dois movimentos nacionalistas combatiam o colonialismo português, mas também se digladiavam ferozmente entre eles próprios a anunciarem o que seria o sangrento pós-independência e que se veio a confirmar plenamente.
Nesta futurologia que perdeu o comboio do passado, atrevo-me pois a sustentar que Deolinda Rodrigues tinha todo o potencial para ter a já referida evolução, em direcção a um choque aberto com então direcção do MPLA.
De todos os documentos que tenho tido acesso relativamente a este tempo passado, nenhum como estes manuscritos de Deolinda Rodrigues, são tão frontais na crítica interna ao funcionamento do MPLA e muito particularmente ao posicionamento de alguns dos seus principais dirigentes da época e muito especialmente no que toca ao tratamento da chamada questão racial que sempre dividiu os “camaradas”.
É de facto um retrato fiel daqueles anos difíceis de exílio por ente os dois Congos, onde as contradições que viriam a desabrochar em toda a sua plenitude pouco mais de dez anos depois, já estavam a marcar o quotidiano do movimento e de que maneira.
“Eu estava decidida a participar na reunião de terça-feira, mas agora pergunto-me para quê, se tudo o que se diz é racismo? Eles estão sempre na defensiva e agarram-se sempre à clareza da pele, única garantia deles sob o regime português”- Era assim que em Março de 65 Deolinda se referia ao debate racial no seio do MPLA.
“O fulcro da questão é o desnível económico existente, que traz toda a revolta e humilhação. Não que devamos obter já uma vida completa cá fora nesta fase. Não. Mas que aqueles que se dizem também nacionalistas e estão cá connosco, compreendam também isso e não se limitem a uma tentativa de sacrifício bem relativo. Este é o meu racismo”.
Mais do que isso:
“Eu juro a todos os mulatos e portugueses metidos directa ou indirectamente no MPLA que, tudo o que não contribuir para o bem estar das massas angolanas mais exploradas, será combatido por mim com uma força cada vez maior.”
Ainda mais claro nesta abordagem está a sua crítica à liderança dos dois principais movimentos nacionalistas:
“A base tem que ser preparada agora para atingir o cume, esta é uma tarefa urgente.
E é aqui que o meu ânimo desmaia: Angola não tem ainda actualmente o dirigente necessário. O Holden é um escroc cem por cento, para dizer o menos possível dele. O Neto é muito influenciado pelas teorias “avançadas, compreensivas e não sei mais o quê”. Não é política e moralmente virgem. Isto é o que eu penso. Posso estar errada.”
É aqui nesta parte que a minha futurologia iria começar.

4 de março de 2015

Ascensão de Angola, da Guerra a Potência Regional

Livro de Ricardo Soares Oliveira, professor em Oxford, foi lançado ontem numa conferência-debate na Universidade de Londres.

**


Baseado em três anos de investigação e de experiência em primeira-mão, é lançado amanhã na Universidade de Londres o livro Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War, de Ricardo Soares de Oliveira, da Universidade de Oxford, numa conferência-debate que contará com a presença, além do autor, de Christopher Cramer, Lara Pawson e Gika Tetembwa.

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Professor de Políticas Comparadas, Ricardo Soares de Oliveira estudou a fundo evolução de Angola desde o fim da Guerra Civil em 2002 até agora e, tal como explica o subtítulo do seu livro, traça um retrato do país que se ergueu das feridas de um conflito de quatro décadas, primeiro de luta de libertação e depois de guerra civil, para se transformar naquilo que é hoje, potência regional e económica.
Assente numa aliança estratégica com a China e com o apoio de centenas de expatriados, financiado pelo dinheiro do petróleo, sobretudo, e dos diamantes, explica o autor, o governo angolano estabeleceu uma ambiciosa estratégia de reconstrução nacional que resultou num crescimento económico de dois dígitos anuais e a transformação do país na terceira maior economia da África subsariana.
Magnificent beggar land_imageProfessor em Oxford desde 2007, Ricardo Soares de Oliveira foi investigador no Sidney Sussex College da Universidade de Cambridge e membro do Centre of International Studies da mesma universidade, também trabalhou na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e é professor visitante no Centre d’Études et Recherches Internationales de Paris, conhecido como Sciences-Po, e no Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington.
Trabalhou nas áreas de governança e energia do Banco Mundial, Comissão Europeia, no National Democratic Institute for International Affairs e no Ministério da Defesa francês, tendo escrito, em 2007, o livro Oil and Politics in the Gulf of Guinea, tendo sido ainda co-editor de China Returns to Africa: A Rising Power and a Continent Embrace, em 2008, e The New Protectorates: International Tutelage and the Making of Liberal States, em 2011.


DOIS POEMAS DE AMÉLIA DALOMBA



Mãos

Mãos desenham raízes dos cânticos da terra
Geram vida na identidade da flor entre o espírito da letra
Engendram salmos na inserção da cruz às preces das dores
Mãos são séculos de páginas aos joelhos de Fátima
São lágrimas ao altar do desespero


Herança de morte

Lírios em mãos de carrascos
Pombal à porta de ladrões
Filho de mulher à boca do lixo
Feridas gangrenadas sobre pontes quebradas
Assim construímos África nos cursos de herança e morte
Quando a crosta romper os beiços da terra
O vento ditará a sentença aos deserdados
Um feixe de luz constante na paginação da história
Cada ser um dever e um direito
Na voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança



Amélia Dalomba