"VIRIATO DA
CRUZ - CARTAS DE PEQUIM"
Coordenador
Michel Laban Editora Chá de Caxinde - Luanda - 2004
PREFÁCIO de
Edmundo Rocha
O período da vida de Viriato da Cruz passada
na China Popular reveste-se ainda hoje de um manto de mistério e de fascínio. A
publicação da correspondência de Monique Chajmowiez / Viriato da Cruz, então
exilado na China e da entrevista quê Monique dá a Christine Messiant e a Michel
Laban, pela Editora Chá de Caxinde, em Luanda, têm o mérito de rasgar esse véu
tenebroso e permitir-nos, pela primeira vez, compreender a imensidão do drama
que os dirigentes comunistas chineses impuseram a Viriato da Cruz, à sua mulher
Eugénia e à sua filha, o sofrimento e a solidão espiritual, a terrível sensação
de clausura e o sentimento de se encontrarem totalmente cortados do mundo.
Viriato traduz esses sentimentos na carta de 23.07.1971 a Monique:...
"L'éxilé par-tout est seul; mais, ici, il l'est beaucoup plus
qu'aílleurs."
Ao decidir
mergulhar num país longínquo e distante do teatro da luta de libertação em Angola,
luta de que ele fora um dos principais impulsionadores, ao criar, em Luanda,
dez anos antes, o Partido Comunista Angolano, Viriato assume uma gravíssima
decisão que o iria afastar da realidade africana e transformá-lo gradual mas
inexoravelmente num refém da máquina orwelliana chinesa.
Aceitando o cargo
de dirigente da facção pró chinesa da Organização dos Escritores Afro Asiáticos
[com sede pró soviética no Cairo], e ao comungar intensamente, nos primeiros
tempos, nos acontecimentos da Revolução Cultural que agitaram profundamente
todas as camadas sociais da China Popular, Viriato entendia ser coerente
consigo próprio dando um total apoio ao país que encarnava as esperanças da
humanidade, ajudando os camaradas chineses a consolidar e aprofundar a revolução.
É certo que os
dirigentes chineses receberam de braços abertos o revolucionário africano que
tinha demonstrado uma enorme capacidade criativa e mobilizadora ao fundar e
organizar o MPLA, primeiro em Conackry e, depois, no Congo Leopoldville. Os
chineses entendiam que Viriato da Cruz poderia facilitar a penetração
ideológica do socialismo maoista no continente africano, e que, possivelmente,
poderia vir a recuperar as posições perdidas na direcção do único movimento
progressista angolano. Uns e outros enganavam-se redondamente. Daí nasceu um
grave malentendido com consequências trágicas para Viriato e para a sua
família.
Monique mostra de
maneira subtil que as expectativas mútuas, tanto de Viriato como dos
comunistas, saíram profundamente goradas alguns anos depois da sua chegada a
China, sobretudo após o périplo pelas capitais Africanas de uma delegação da
Organização dos Escritores Afro Asiáticos (OEAA). No final da viagem de
regresso a Pequim, Viriato elabora a pedido dos dirigentes chineses, um relatório
sobre os resultados políticos desse périplo africano. Viriato estava longe de
ter a mesma visão optimista dos chineses sobre a eminência da Revolução
Mundial. Viriato estimava que os países africanos ainda não tinham condições
objectivas para realizarem a revolução socialista, mesmo os mais progressistas,
como o Mali, a Guiné e o Gana. Longe disso. Apesar da sua posição frágil na
China Popular, dependente dos favores do dragão chinês, ele não modifica as
suas conclusões.
Ao recusar-se
corrigir o seu relatório político dirigido às cúpulas chinesas, Viriato
demonstrava, por um lado, uma grande firmeza de julgamento, mas, por outro,
ausência de pragmatismo e de flexibilidade. Esses aspectos do seu carácter já
lhe tinham valido graves dissabores na sua curta vida política aquando da crise
de 1962 - 63, no seio do MPLA. O relatório pessimista elaborado por Viriato ia
contra a doutrina maoista da iminência da revolução mundial.
Á medida que a
Revolução Cultural evoluía e se aprofundava, alterando as estruturas sociais e
económicas tanto nos meios urbanos como rurais, arrastando imensos dramas
individuais e colectivos, tal malestrom que tivesse varrido a imensidão da
China ao belo prazer de dirigentes orweilianos, os chineses apercebem-se de que
Viriato se distanciava cada vez mais das teses maoistas. Não conseguimos, no
entanto, compreender a atitude dos chineses em manter refém Viriato da Cruz,
quando seria mais simples expulsá-lo definitivamente da China. Mas os chineses
temiam a inteligência superior de Viriato e das consequências negativas que ele
poderia causar à causa maoista, se ele saísse da China.
Monique
mostra-nos também o que foi a luta titânica mas infrutífera de Viriato Cruz
para tentar fugir às garras do dragão chinês e obter o apoio de dirigentes
africanos de passagem por Pequim. A recusa sistemática dos vários líderes
africanos pressentidos em atribuir-lhe um título de viagem que lhe permitissem
sair da China, o desinteresse revelado pêlos angolanos então residentes em
Pequim pela dramática situação da família Cruz, mostra o abismo entre as
afirmações sobre os valores de respeito e de solidariedade entre africanos e a
sua tradução na prática.
Os últimos tempos
da vida de Viriato de sua família foram de um dramatismo extremo, levando
Viriato a actos que revelavam os tremendos os tremendos conflitos que
atravessavam a sua mente. As graves carências alimentares fragilizaram-no e
conduziram-no a uma morte precoce, na maior miséria física e espiritual. No
entanto, derradeira humilhação foi a maneira abjecta como levado para o
cemitério dos estrangeiros entaipado entre quatro tábuas, transportado num
camião militar. Penso que o povo angolano não esquecera jamais esta afronta
feita pelos dirigentes comunistas chineses a um dos principais lideres do
movimento nacionalista que ainda hoje dirige os destinos de Angola.
Esse notável
revolucionário angolano, que fizera do marxismo o seu farol ao ponto de
procurar esclarecer Monique sobre aspectos fundamentais dessa filosofia, e de
tomar descabidamente posição na gigantesca luta entre as várias facções
chinesas, umas a favor outras contra as teses maoistas, experimentou na sua
própria carne as consequências da adopção de uma intransigente liberdade
intelectual individual nos antípodas do sistema colectivista de negação total
dos direitos individuais da condição humana e do homem como ser pensante.
Viriato da Cruz
morreu, vítima dos seus próprios ideais, das suas profundas contradições
humanas e políticas ao longo da sua curta vida, mas também da total ausência de
solidariedade dos seus compatriotas africanos a quem ele dedicara toda a sua
vida.
Os depoimentos de
Monique Chajmowiez tem um grande interesse político e humano permitindo ao
leitor angolano aperceber-se do carácter e da personalidade daquele que foi um
dos fundadores e arquitecto do MPLA.
Edmundo Rocha
Lisboa,
25.08.2003
Fonte: Casa de Angola em Lisboa (http://www.casadeangola.org)
1 comentário:
Bom documento sobre os difíceis dias de Viriato da Cruz na China.
Abraço.
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