Jacaré Bangão, monumento na cidade do Caxito.
Contam-se muitas estórias… e nos tempos de crise e sujeição, em que é necessário e urgente resistir, há estórias que se tornam archotes a arder na escuridão. São formas de resistir à opressão, anseios de Liberdade. Uma forma inteligente de resistência psicológica.
Em dado momento, essas estórias, inventadas ou baseadas numa frágil e ténue verdade, sem sabermos bem como, transfiguram-se em algo vivo, espiritualmente superior e poderoso: o mito, o nada que é tudo. Esse nada que é tudo vive, revive e transcende-se como que por artes mágicas e torna-se uma arma. Uma arma poderosa que pode ser usada e reusada nos mais variados momentos de crise na História de um determinado povo ou país.
Assim é o caso da estória popular angolana do “Jacaré Bangão” acontecida em terras do Caxito, no tempo colonial. Caxito é a actual capital da província do Bengo que fica a cerca de 130 Km da cidade de Luanda.
Há várias versões desta estória. Vamos ficar por esta que é popularmente aceite e que vai ao encontro do que foi dito acima. Eis a estória recontada por mim:
ESTÓRIA DO JACARÉ BANGÃO
Esta estória aconteceu no tempo em que as autoridades coloniais portuguesas obrigavam com formas de extrema coacção o pagamento do Imposto Geral Mínimo a cada cidadão angolano. Quem resistisse ou tivesse o atrevimento de não pagar era exemplarmente punido. O Imposto era profundamente odiado, por vários motivos, um deles pela forma injusta como era cobrado e por ser mais um modo de opressão por parte de um governo imposto pela força e que praticava formas modernas de escravatura como o famigerado trabalho contratado, usualmente referenciado como “contrato”.
Consta que um determinado chefe de posto do Caxito era implacável, feroz e desumano no modo como arrecadava o dito imposto. Ninguém escapava à sua fúria.
Aconteceu que, vivia junto às margens do rio Dande, que serpentea pela bela e orgulhosa cidade do Caxito, um ilustre jacaré que dava pelo nome de Sr. Ngandu. Ele era um jacaré enorme, brigão, com fama de muito mal humorado e sempre zangado, mesmo com a própria sombra.
O Sr. Ngandu tinha tido em tempos uns desaguisados com as autoridades coloniais, queriam tirar a sua pele para mandar no Putu para fazer carteiras... e como chegou aos seus ouvidos a fama do dito Chefe de Posto o nosso jacaré resolveu fazer-lhe uma partida e aproveitar para se vingar daquela ignóbil humilhação quando lhe quiseram caçar para lhe roubar a pele e logo a ele, sim a ele, um crocodilo da mais alta linhagem das margens do Dande.
Uma certa manhã, ainda os galos não tinham acordado bem o dia, Sr. Ngandu pôs a sua cara mais feroz e mostrando seus dentes cortantes e pontiagudos saiu do Dande e com um saco de dinheiro na boca, pois jacaré não tem mãos, dirigiu-se ao Posto Administrativo com quanta pressa tinha mas no desengonço próprio de qualquer jacaré quando anda em terra-firme.
Chegou no posto ameaçador e zangado para pagar seu devido imposto ao implacável chefe do Mwana Putu. De dentes arreganhados, entrou pelo Posto dentro e logo veio o Sipaio a mando do patrão já medroso, que impedisse célere a presença naquela repartição pública de tão nefando animal.
_ Xé bicho, m’bora, xó, xó, fora... Sr. Chefe num quer tu aqui, bicho. Tunda, tunda...
Mas Sr. Ngandu não era homem... perdoem-me, não era jacaré para se intimidar com tal palavreado. Deu uma dentada na bunda seca do Sipaio que se pôs a correr em alvoroço pela rua fora.
E então, com todo seu jeito e lágrimas de crocodilo, Sr. Ngandu falou assim no chefe do posto:
_ Ó homem, venha cá e tome lá o seu rico imposto eu sou Ngandu, um velho jacaré do Dande, venho aqui pagar meu devido imposto. Venha, meu querido amigo, pegar seu dinheirinho preso em meus dentinhos afiados.
E dizendo isto o Sr. Ngandu deu uma risadinha muito própria de jacaré, bateu castanholas com seus dentinhos afiados de riso pontiagudo, olhando desafiador no chefe do posto.
O chefe, metido em sua farda colonial cor caqui de reluzentes botões não botou voz no discurso. Amarelo de cagaço e verde de medroso lá conseguiu arranjar força nas pernas trementes e saindo a correr porta fora, cagado e borrado no fundilho dos calções, gritava: - Acudam, acudam um enorme jacaré quer-me comer... abandonando o posto à sua sorte.
Os populares do Caxito, alertados pela fuga do Sipaio, haviam-se juntado à porta da Administração e a tudo isto assistiram. Entretanto, enquanto o Sr. Ngandu regressava pachorrento, ameaçador e desengonçado ao seu lar, nas margens do Dande, o povo começou dançar e batendo palmas cantava mesmo assim:
Viva Jacaré, Jacaré Bangão
sacola na boca, jacaré não tem mão,
saiu do Dande pagar o imposto
mordeu no sipaio assustado
e ao valentão Chefe do Posto
lhe meteu a correr cagado
borrado nos fundilhos do calção.
Viva Jacaré, Jacaré Bangão.
Por isto tudo que aconteceu, na então Vila de Caxito, Jacaré Bangão, ainda é hoje um herói admirado nestas terras onde o Dande continua serpenteando sem depressas nas margens do Caxito. E dizem os mais-velhos que Jacaré Bangão ainda hoje vive por ali, nas margens da cidade do Caxito.
Namibiano Ferreira
NOTA: Sobre esta estória, existem outras duas versões retiradas do livro “Do Cunene a Cabinda – IV Raid Todo-o-Terreno do Kwanza-Sul”. A primeira, tida como mais provável, é a seguinte:
Vivia na região um cidadão que dava pelo nome de Kingandu, palavra derivada de Ngandu, que em kimbundu significa jacaré. Esse cidadão era brigão, mas considerado nas redondezas. Kingandu era dado a não respeitar a autoridade colonial, não pagando impostos, até que um chefe de posto menos condescendente o obrigou a pagar. Assim, ficou a fama de que “e o Ngandu que é valente pagou, agora ninguém escapa”.
Quando, ao pagar o imposto, lhe perguntaram o nome, ele respondeu: Ngandu. E foi apontado que quem pagou o imposto foi o jacaré.
Por outro lado, o Sr. Domingos Correia Diogo, natural do Caxito, recolheu a seguinte versão:
Em 1848, em pleno regime colonial, o povo era obrigado ao pagamento do Imposto Geral Mínimo.
Um cidadão de nome Muneango transformou-se, magicamente, em autêntico “jacaré” e dirigiu-se ao Posto Administrativo para pagar o seu imposto como cidadão e natural do Caxito.
O chefe do posto administrativo ficou surprendido com a situação e ele e a sua equipa de sipaios meteram-se em fuga, abandonando o gabinete, perante a fúria do jacaré.