O que é a poesia?
A poesia é um espanto!
Ouço o vento, esse mesmo vento que assobia no deserto e não sabe o que nos
pede.
Perguntas-me o que é a poesia, esperas ávido a resposta e, como o vento no
deserto, eu também assobio e não sei o que me pedes, perguntando. Ao fim de
todo este tempo eu ainda não sei que mistério é este que se entranha, como o
vento, invisível pelos sulcos de todas as coisas, de todos os sentimentos, de
todas as palavras. É a poesia este mistério profundo como a aurora do mundo. Está
em todo o lado como se fosse uma centelha que um deus soprou e é dado ao homem
captar, não na totalidade, mas em pequenas e misteriosas gotas que, do
invisível ou do Logos, constrói o poeta, o poema que lhe acontece, num
acontecimento também ele carregado de vetusto mistério, como se fosse uma casa
erguida com tijolos de palavras, símbolos, metáforas e todas essoutras
particularidades que conhecemos com a designação de poesia.
Mas saber, saber de concreto, de forma visível o que é a poesia, este
mistério semi-revelado á nossa humana condição, eu não sei, eu ainda não sei o
que é a poesia. E também não sei completamente como ela acontece, embora tenha
uma certa fórmula que encontrei igual ou parecida à minha, nas palavras de um
outro poeta, muito parecidas àquilo que se passa comigo quando a poesia me
acontece. São as palavras de Sophia na sua Arte Poética IV:
“o poeta é um escutador. É difícil
descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir,
uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge
e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da
concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o «poema todo» e não apenas
um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é necessário que a atenção não se
quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o
poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu
trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito
esse poema que acontece, que aparece como já feito? A esse «como, onde e quem»
os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão
o subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um
filme que de repente, movido por qualquer estimulo, se projecta na consciência
como num écran. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me
difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas
sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas
sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e
viver que me torna sensível — como a película de um filme — ao ser e ao
aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e esse
aparecer.
Deixar que o poema se diga por
si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um
ditado (que ora é mais nitido, ora mais confuso), é a minha maneira de
escrever.”
E quantas, quantas vezes o poema chega aos meus sentidos como uma
comunicação sensorial através de um odor, de uma memória, de um som, de uma
lembrança, de uma palavra, de qualquer outra actividade, tão simples como
comer, ler, sorrir, ou um sentimento que
pode ir do amor á indignação, ira ou mesmo revolta. Uma vez que esse misterioso
algo se instala, numa parte de mim (que não sei onde é), de imediato se inicia
um processo do fazer acontecer o poema e neste quase transe, o silêncio e a
concentração são fundamentais, tal como Sophia esse fio, essa misteriosa
sintonia não pode ser quebrada e tem de ser logo imediatamente registada, caso
haja uma quebra na sintonia, o poema nunca mais acontece ou fica mutilado, por
vezes, mais tarde é possível recuperá-lo, mas nunca é mais aquele poema de um
dado e particular momento. Não é um poema acontecido mas um poema escrito, forçado (por vezes também sei fazer desses poemas). Quando um poema me acontece, posso vos dizer que me sinto um outro, eu mesmo
diria que me sinto uma espécie de cavalo-de-santo, há o trespasse em mim de uma
certa aura de mediúnica revelação, às vezes um êxtase ou uma pequena epifania.
Quando o poema termina, é como se eu acordasse e, quantas vezes, a minha
primeira leitura do poema revela-se, para mim próprio, um espanto. Creio,
então, que a poesia é este espanto e que uma vez escrito e dado a ler a outros
vai, de cada vez que é lido, permitir o acontecimento da poesia e dessoutro
espanto para muito além do processo criativo. Os leitores, cada um a seu jeito,
fazem reacontecer o poema e o espanto intemporalmente.
Namibiano Ferrreira
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