REGINALDO SILVA
O “racismo” de Deolinda Rodrigues
•04.03.2015 • 00h00 • atualizado às 08h27
Se me fosse possível fazer alguma futurologia regressando ao passado para me colocar na primeira metade dos anos 60, não teria muitas dúvidas em admitir que Deolinda Rodrigues depois de Viriato da Cruz e Matias Miguéis, seria a primeira dissidente do MPLA a assumir a sua ruptura com a direcção de Agostinho Neto.
Esta convicção que não é de hoje nem de ontem, nasceu-me da leitura parcial do seu diário e outros documentos que o irmão Roberto de Almeida decidiu publicar em dois volumes entre 2003 e 2004 embora os originais já estivessem em sua posse há cerca de 30 anos.
Estamos a falar de “Deolinda Rodrigues- Diário de Um Exílio Sem Regresso” e “Deolinda Rodrigues- Cartas de Langidila e outros documentos”.
A ter em conta o seu explosivo conteúdo, o novel editor teve de facto necessidade de pensar muito e de repensar ainda mais, mas felizmente para a própria história que certamente já lhe agradeceu o gesto.
A decisão foi a melhor, evitando-se mais uma “queima de arquivos”. Chegou assim ao público um testemunho autêntico porque escrito na intimidade de quem se confessa para o papel, sem ter necessidade de prestar contas a ninguém, nem de ter conta os condicionamentos habituais de quem fala para uma plateia, seja ela qual for.
Uma edição feita sem mexer em nenhuma vírgula, como se costuma dizer, isto é, sem qualquer censura, o que em principio não seria possível durante o monopartidarismo, tempo em que Roberto de Almeida foi o mais atento e vigilante responsável editorial do regime, nas suas vestes de Secretário do MPLA-PT para a Esfera Ideológica.
O próprio editor reconheceu a “gravidade” da sua decisão ao escrever no prefácio que “talvez não agradem ao leitor as referências e observações feitas a respeito de alguns personagens, mas Deolinda era assim mesmo – doce e compreensiva mas também cáustica e dura, quando necessário, no contexto da época”.
Este ano decidi revisitar estes dois livros, aproveitando a passagem de mais uma um “Dia da OMA”, que é o 2 de Março, em homenagem à data em que Deolinda Rodrigues e suas 4 companheiras de infortúnio (Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paim e Teresa Afonso)foram presas em 1967 pela FNLA, tendo sido posteriormente assassinadas em condições que nunca foram completamente esclarecidas quanto suas reais motivações.
Na altura os dois movimentos nacionalistas combatiam o colonialismo português, mas também se digladiavam ferozmente entre eles próprios a anunciarem o que seria o sangrento pós-independência e que se veio a confirmar plenamente.
Nesta futurologia que perdeu o comboio do passado, atrevo-me pois a sustentar que Deolinda Rodrigues tinha todo o potencial para ter a já referida evolução, em direcção a um choque aberto com então direcção do MPLA.
De todos os documentos que tenho tido acesso relativamente a este tempo passado, nenhum como estes manuscritos de Deolinda Rodrigues, são tão frontais na crítica interna ao funcionamento do MPLA e muito particularmente ao posicionamento de alguns dos seus principais dirigentes da época e muito especialmente no que toca ao tratamento da chamada questão racial que sempre dividiu os “camaradas”.
É de facto um retrato fiel daqueles anos difíceis de exílio por ente os dois Congos, onde as contradições que viriam a desabrochar em toda a sua plenitude pouco mais de dez anos depois, já estavam a marcar o quotidiano do movimento e de que maneira.
“Eu estava decidida a participar na reunião de terça-feira, mas agora pergunto-me para quê, se tudo o que se diz é racismo? Eles estão sempre na defensiva e agarram-se sempre à clareza da pele, única garantia deles sob o regime português”- Era assim que em Março de 65 Deolinda se referia ao debate racial no seio do MPLA.
“O fulcro da questão é o desnível económico existente, que traz toda a revolta e humilhação. Não que devamos obter já uma vida completa cá fora nesta fase. Não. Mas que aqueles que se dizem também nacionalistas e estão cá connosco, compreendam também isso e não se limitem a uma tentativa de sacrifício bem relativo. Este é o meu racismo”.
Mais do que isso:
“Eu juro a todos os mulatos e portugueses metidos directa ou indirectamente no MPLA que, tudo o que não contribuir para o bem estar das massas angolanas mais exploradas, será combatido por mim com uma força cada vez maior.”
“Eu juro a todos os mulatos e portugueses metidos directa ou indirectamente no MPLA que, tudo o que não contribuir para o bem estar das massas angolanas mais exploradas, será combatido por mim com uma força cada vez maior.”
Ainda mais claro nesta abordagem está a sua crítica à liderança dos dois principais movimentos nacionalistas:
“A base tem que ser preparada agora para atingir o cume, esta é uma tarefa urgente.
E é aqui que o meu ânimo desmaia: Angola não tem ainda actualmente o dirigente necessário. O Holden é um escroc cem por cento, para dizer o menos possível dele. O Neto é muito influenciado pelas teorias “avançadas, compreensivas e não sei mais o quê”. Não é política e moralmente virgem. Isto é o que eu penso. Posso estar errada.”
É aqui nesta parte que a minha futurologia iria começar.
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