29 de setembro de 2010

DESTINO

Kwanza Sul - Foto Alex Correia

Quando nasci
o Kilamba* das Kiandas
me deu o Astrolábio
verdadeiro do céu e do mar
– Hulu e Kalunga – **
de marcar ondjira*** na terra
e eu tenho de te cantar
e eu tenho de me perder
nos vincos dourados
onde a calema fala...

Namibiano Ferreira
 
*Sacerdote do culto da Kianda (Sereia).
**Céu e Mar.
***Caminho.

25 de setembro de 2010

ESTÓRIA DO JACARÉ BANGÃO


Jacaré Bangão, monumento na cidade do Caxito.

Contam-se muitas estórias… e nos tempos de crise e sujeição, em que é necessário e urgente resistir, há estórias que se tornam archotes a arder na escuridão. São formas de resistir à opressão, anseios de Liberdade. Uma forma inteligente de resistência psicológica.
Em dado momento, essas estórias, inventadas ou baseadas numa frágil e ténue verdade, sem sabermos bem como, transfiguram-se em algo vivo, espiritualmente superior e poderoso: o mito, o nada que é tudo. Esse nada que é tudo vive, revive e transcende-se como que por artes mágicas e torna-se uma arma. Uma arma poderosa que pode ser usada e reusada nos mais variados momentos de crise na História de um determinado povo ou país.
Assim é o caso da estória popular angolana do “Jacaré Bangão” acontecida em terras do Caxito, no tempo colonial. Caxito é a actual capital da província do Bengo que fica a cerca de 130 Km da cidade de Luanda.
Há várias versões desta estória. Vamos ficar por esta que é popularmente aceite e que vai ao encontro do que foi dito acima. Eis a estória recontada por mim:

ESTÓRIA DO JACARÉ BANGÃO


Esta estória aconteceu no tempo em que as autoridades coloniais portuguesas obrigavam com formas de extrema coacção o pagamento do Imposto Geral Mínimo a cada cidadão angolano. Quem resistisse ou tivesse o atrevimento de não pagar era exemplarmente punido. O Imposto era profundamente odiado, por vários motivos, um deles pela forma injusta como era cobrado e por ser mais um modo de opressão por parte de um governo imposto pela força e que praticava formas modernas de escravatura como o famigerado trabalho contratado, usualmente referenciado como “contrato”.

Consta que um determinado chefe de posto do Caxito era implacável, feroz e desumano no modo como arrecadava o dito imposto. Ninguém escapava à sua fúria.

Aconteceu que, vivia junto às margens do rio Dande, que serpentea pela bela e orgulhosa cidade do Caxito, um ilustre jacaré que dava pelo nome de Sr. Ngandu. Ele era um jacaré enorme, brigão, com fama de muito mal humorado e sempre zangado, mesmo com a própria sombra.

O Sr. Ngandu tinha tido em tempos uns desaguisados com as autoridades coloniais, queriam tirar a sua pele para mandar no Putu para fazer carteiras... e como chegou aos seus ouvidos a fama do dito Chefe de Posto o nosso jacaré resolveu fazer-lhe uma partida e aproveitar para se vingar daquela ignóbil humilhação quando lhe quiseram caçar para lhe roubar a pele e logo a ele, sim a ele, um crocodilo da mais alta linhagem das margens do Dande.

Uma certa manhã, ainda os galos não tinham acordado bem o dia, Sr. Ngandu pôs a sua cara mais feroz e mostrando seus dentes cortantes e pontiagudos saiu do Dande e com um saco de dinheiro na boca, pois jacaré não tem mãos, dirigiu-se ao Posto Administrativo com quanta pressa tinha mas no desengonço próprio de qualquer jacaré quando anda em terra-firme.

Chegou no posto ameaçador e zangado para pagar seu devido imposto ao implacável chefe do Mwana Putu. De dentes arreganhados, entrou pelo Posto dentro e logo veio o Sipaio a mando do patrão já medroso, que impedisse célere a presença naquela repartição pública de tão nefando animal.
_ Xé bicho, m’bora, xó, xó, fora... Sr. Chefe num quer tu aqui, bicho. Tunda, tunda...
Mas Sr. Ngandu não era homem... perdoem-me, não era jacaré para se intimidar com tal palavreado. Deu uma dentada na bunda seca do Sipaio que se pôs a correr em alvoroço pela rua fora.
E então, com todo seu jeito e lágrimas de crocodilo, Sr. Ngandu falou assim no chefe do posto:
_ Ó homem, venha cá e tome lá o seu rico imposto eu sou Ngandu, um velho jacaré do Dande, venho aqui pagar meu devido imposto. Venha, meu querido amigo, pegar seu dinheirinho preso em meus dentinhos afiados.
E dizendo isto o Sr. Ngandu deu uma risadinha muito própria de jacaré, bateu castanholas com seus dentinhos afiados de riso pontiagudo, olhando desafiador no chefe do posto.
O chefe, metido em sua farda colonial cor caqui de reluzentes botões não botou voz no discurso. Amarelo de cagaço e verde de medroso lá conseguiu arranjar força nas pernas trementes e saindo a correr porta fora, cagado e borrado no fundilho dos calções, gritava: - Acudam, acudam um enorme jacaré quer-me comer... abandonando o posto à sua sorte.
Os populares do Caxito, alertados pela fuga do Sipaio, haviam-se juntado à porta da Administração e a tudo isto assistiram. Entretanto, enquanto o Sr. Ngandu regressava pachorrento, ameaçador e desengonçado ao seu lar, nas margens do Dande, o povo começou dançar e batendo palmas cantava mesmo assim:

Viva Jacaré, Jacaré Bangão
sacola na boca, jacaré não tem mão,
saiu do Dande pagar o imposto
mordeu no sipaio assustado
e ao valentão Chefe do Posto
lhe meteu a correr cagado
borrado nos fundilhos do calção.
Viva Jacaré, Jacaré Bangão.

Por isto tudo que aconteceu, na então Vila de Caxito, Jacaré Bangão, ainda é hoje um herói admirado nestas terras onde o Dande continua serpenteando sem depressas nas margens do Caxito. E dizem os mais-velhos que Jacaré Bangão ainda hoje vive por ali, nas margens da cidade do Caxito.

Namibiano Ferreira


NOTA: Sobre esta estória, existem outras duas versões retiradas do livro “Do Cunene a Cabinda – IV Raid Todo-o-Terreno do Kwanza-Sul”. A primeira, tida como mais provável, é a seguinte:
Vivia na região um cidadão que dava pelo nome de Kingandu, palavra derivada de Ngandu, que em kimbundu significa jacaré. Esse cidadão era brigão, mas considerado nas redondezas. Kingandu era dado a não respeitar a autoridade colonial, não pagando impostos, até que um chefe de posto menos condescendente o obrigou a pagar. Assim, ficou a fama de que “e o Ngandu que é valente pagou, agora ninguém escapa”.
Quando, ao pagar o imposto, lhe perguntaram o nome, ele respondeu: Ngandu. E foi apontado que quem pagou o imposto foi o jacaré.
Por outro lado, o Sr. Domingos Correia Diogo, natural do Caxito, recolheu a seguinte versão:
Em 1848, em pleno regime colonial, o povo era obrigado ao pagamento do Imposto Geral Mínimo.
Um cidadão de nome Muneango transformou-se, magicamente, em autêntico “jacaré” e dirigiu-se ao Posto Administrativo para pagar o seu imposto como cidadão e natural do Caxito.
O chefe do posto administrativo ficou surprendido com a situação e ele e a sua equipa de sipaios meteram-se em fuga, abandonando o gabinete, perante a fúria do jacaré.


20 de setembro de 2010

HIDROGRAFIA


Kwanza Sul (Angola)

Na hidrografia do teu corpo
desenho a nudez dos rios
malaquites a beijar as coxas púbicas
dos lábios – margens abotoadas –
na nudez vestes de loucura verde.

Namibiano Ferreira

12 de setembro de 2010

LUBANGO

Lubango - Estátua da Liberdade

No Lubango, hoje, o tempo é o que é e eu não estou no Lubango.
No Lubango, num dia de chorosa chuvada, trovoada e flashes de relâmpagos,
recordo as bátegas grossas, tão grossas como se fossem permanentes tubos transparentes ligando o céu e a terra, num místico beijo do suor divino.
O dilúvio abatia-se sobre o mundo! E os homens esperavam complacentes
vórtice de uma paciencia africana e milenar enquanto nas matas a promessa...

Para além disto, o Lubango é sempre os versos de um poema de Viriato da Cruz:
policromias, fulgências, feitios e transparências
de um pratinho de louça
de Rouen.

Namibiano Ferreira
In Frag/men/sias - Fragmensia de Lembranças . antigas .

1998

 
 
 
Lubango - Cristo Rei

7 de setembro de 2010

CARTA DE MARTIN LUTHER KING A UMA ANGOLANA (Deolinda Rodrigues de Almeida)

Foto Jornal de Angola (on line)


No dia 21 de Julho de 1959, da cidade de Montgomery, no Alabama, Martin Luther King escrevia à heroína angolana:


Senhorita Deolinda Rodrigues

Muito lhe agradeço pela sua muito amável carta, de data recente. Li cada linha que me escreveu com grande interesse. É realmente encorajador saber do seu interesse na libertação do povo do seu país. Estou bastante contente em receber informação em primeira-mão sobre a situação em Angola. Tive notícias a partir de outras pessoas que vivem fora do país, mas não há nada melhor do que receber notícia em primeira-mão.

Parece que os portugueses são as pessoas mais lentas a largar mão das suas possessões em territórios estrangeiros. É lamentável que lhes falte a visão para se aperceberem do que está traçado para esses territórios. É sempre trágico ver um indivíduo ou uma nação tentando impedir ou parar uma irresistível onda.

Criar uma liderança

Não sei se posso dar-lhe alguma sugestão concreta sobre o que fazer na vossa particular situação, pois muitas vezes é necessário ver com os próprios olhos antes de poder dar uma resposta definitiva. Direi, contudo, que o primeiro passo para corrigir a situação é criar uma verdadeira liderança no seu País. Alguma entidade ou algumas poucas entidades devem posicionar-se como símbolos do vosso movimento para a independência.

Logo que tal símbolo seja encontrado não é difícil conseguir que as pessoas o sigam e quanto mais o opressor procurar deter e derrotar esse símbolo, tanto mais ele consolidará o movimento. Seria maravilhoso regressar ao seu país com esta ideia na mente A liberdade nunca é alcançada sem sofrimento e sacrifício. Só se conquista com trabalho persistente e incansáveis esforços de pessoas dedicadas.

A senhorita Deolinda Rodrigues deve também saber que aquilo que vem acontecendo noutros países de África terá inevitavelmente repercussões no seu país. Será impossível Angola permanecer em África, sem ser afectada por aquilo que acontece na Nigéria, no Quénia e na Rodésia (referia-se à Zâmbia, então chamada Rodésia do Norte). Portanto, a vossa verdadeira esperança reside no facto de que a independência será uma realidade em toda a África, dentro dos próximos anos.

Dirijo à senhorita Deolinda Rodrigues as minhas orações e os melhores votos de bênçãos de Deus, em tudo o que estiverem a fazer. Espero que os seus estudos continuem de maneira a serem frutíferos e compensadores.

Em encomenda separada envio-lhe um exemplar do meu livro “Stride Toward Freedom”. Queira aceitá-lo como oferta minha. Espero que lhe venha a ser útil este meu humilde trabalho.

Muito sinceramente, me subscrevo

Martin Luther King, Jr.

 
Visão política
 
O reverendo Martin Luther King revela nesta carta uma visão política fora do comum. Tudo o que afirmou a Deolinda Rodrigues, então ainda jovem estudante no exílio, aconteceu. As independências nas antigas colónias de África sucederam-se em alta velocidade e, na verdade, só ficaram para o fim as antigas colónias portuguesas, porque uma ditadura feroz se convenceu de que era possível travar a imparável onde de liberdade que varreu o continente africano.
- Esta carta de Martin Luther King a Deolinda Rodrigues foi “descoberta” por Loide Ana Santos e o embaixador Ismael Martins, que a fizeram chegar à família através do deputado Roberto de Almeida, vice-presidente do MPLA.

Créditos: http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/carta_de_martin_luther_king_a_uma_angolana_na_revolucao
 
Breve nota sobre Deolinda Rodrigues de Almeida, mais conhecida por Deolinda Rodrigues:
 
Deolinda Rodrigues de Almeida e as suas companheiras Irene Cohen, Engrácia Paim, Lucrécia dos Santos e Teresa Afonso, na luta contra o colonialismo português foram incorporadas como combatentes do Esquadrão Kamy, coluna guerrilheira preparada e treinada em 1966 por internacionalistas cubanos e cuja arriscada missão consistia em levar reforços desde a fronteira congolesa até à Primeira Região Político-Militar do MPLA. No interior de Angola, numa longa e penosa marcha, em zona de terra queimada, o Esquadrão perdeu-se, e a fome dizimou uma grande parte dos combatentes, especialmente dos quadros.
Deolinda e as suas quatro companheiras, dirigentes da OMA (Organização da Mulher Angolana), sobreviveram à inclemência das condições climatéricas e do terreno inóspito. Empreenderam o regressando via Zaire (hoje RDC), foram presas, nos arredores da pequena vila de Kamuna, pela FNLA e posteriormente assassinadas. O dia da sua detenção – 2 de Março de 1966 – foi consagrado  Dia da Mulher Angolana.