Hoje, 23 de Abril, é dia Internacional do Livro, escolho o livro LAVRA - Poesia Reunida 1970/2000 de Ruy Duarte de Carvalho, que estou presentemente a ler.
ISBN: 978-972-795-135-2
SINAL
Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos no olhos dos cães.
Os vitelos, ao espreitar a luz pelos sexos das mães, afogavam-se em lama, no
meio dos sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os oleiros
desistiram de encomendar a sua obra a Deus. Enormes cuidados foram inventados
para proteger o fogo nos altares e as crianças adotaram a nudez. As termiteiras
deixaram de existir e as formigas aladas perderam as asas. Os pés dos mais
velhos fenderam-se em chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas,
colavam-se aos dedos como cinza úmida. Os lábios dos sexos das mulheres paridas
inchavam carnudos de uma carne branca e os ventres pendiam como fruta mole.
Naquele ano a
chuva foi excessiva
e os horizontes
deixaram de existir.
Choveu por muito tempo até os cães perderam todo o pêlo e as cabeleiras se
destacarem como algas podres. O rei do Jau ficou colado ao trono e ao boi
sagrado cresceram-lhe os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos
celeiros e essa semente assim era servida aos homens e daí lhes ocorreu um tal
vigor que os seus pênis cresceram desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os
nas mãos e mudos de fascínio.
A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos buracos e vieram
alongar-se ao pé dos paus, mantendo com esforço as cabeças erguidas. Nas
terrinas do leite vicejaram musgos e o leite das vacas alterou-se em soro,a
coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que até nos areais cresceram
talos e as enxurradas produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os
diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer farinha. As próprias
aves morreram quase todas e apenas se salvaram as de penas brancas, que a
distância atraiu, depois comeu.
E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais que se animaram e
até pedras comuns a transmudar-se em carne.
Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu todo o sentido. As
gargantas entupiram-se de limos e as testas que os velhos pousavam nas mãos
fundiam-se aos dedos e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os
corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães. Só as bocas
teimavam em manter-se abertas e quando mais tarde a chuva parou, das bocas saíram
grossas aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a seca voltou e o
mundo secou. A carne antiga a dar-se agora em terra, os fósseis em pedra e as
ramas em húmus. E os passos poliram pouco a pouco as formas.
Naquele ano a
chuva choveu tanto
que a memória
nunca mais teve sentido.
Ruy Duarte de
Carvalho
In Lavra – Livro
III – Exercícios de Crueldade (1975 – 1978)
Um belo texto de um autor do qual nada tinha lido.
ResponderEliminarAbraço.
António, um excelente poeta, conheço
ResponderEliminardesde há muito tempo, a sua temática ligada ao Namibe é familiar...
Contudo só tinha lido as suas duas primeiras obras poéticas: "Chao de Oferta" e "Das decisoes da Idade", consolo-me agora a ler a sua obra completa (poesia) ele também escreveu prosa.
Ruy de Carvalho, nasceu em Santarém (1941) mas foi para Angola ainda muito novo, é cidadao angolano, faleceu em 2010. Já aqui foi publicado e também em Cores & Palavras.
Abraços