Durante a minha
adolescência, as imagens da repressão policial contra manifestantes negros, no
Soweto, na África do Sul, tinham um profundo impacto sobre mim. Cogitava sempre
sobre como aquela população, indefesa, continuava a enfrentar – com danças, marchas
e cânticos – o ódio mortal dos racistas do apartheid.
Essas imagens
justapunham-se às de Nelson Mandela, o símbolo maior da resistência que o
regime do apartheid mantinha encarcerado na prisão de máxima segurança de
Robben Island.
Havia ainda uma
terceira imagem, mais aterradora: a guerra em Angola. O exército sul-africano
era uma força invasora no país e apoiava a guerrilha da UNITA. O governo de
Angola, com o essencial engajamento das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba,
afirmava-se na linha de fogo contra o apartheid. Era o tempo da guerra fria, de
alianças complexas, da divisão mortal dos angolanos. Para um adolescente, a
questão era mais simples. Era a perspectiva do serviço militar obrigatório e a
participação directa na luta, de armas na mão.
No funeral do
Manuel Hilberto Ganga, o activista político assassinado pela guarda
presidencial de José Eduardo dos Santos, a 22 de Novembro deste ano, vi um
momento de Soweto. Às duas primeiras granadas de gás lacrimogêneo lançadas pela
Polícia de Intervenção Rápida (PIR) contra a procissão fúnebre, realizada a pé,
houve pânico e dispersão. À terceira granada, a maioria tinha regressado para
junto da viatura que transportava o morto e da família que havia permanecido
ali, resistente. Por muitos anos guardarei a fotografia do motorista do carro
funerário, firme ao volante, protegendo-se dos efeitos da intoxicação, tapando
o nariz e a boca com um lenço branco.
O funeral de
Manuel Ganga passou a ser a expressão máxima da segregação política, económica
e social que cada vez mais divide os angolanos. Nesse contexto, a oposição
política serve apenas para legitimar o certificado de democracia, que o regime
adquiriu na escola das democracias de fachada. A oposição serve apenas para
enfeitar o parlamento. Nesse contexto, o povo angolano é apenas aquele que,
mesmo esfomeado e espoliado, vai aos comícios do MPLA, onde desfilam orgulhosos
alguns dos maiores ladrões em África e, actualmente, dos mais sofisticados
opressores no continente. O povo angolano são apenas aqueles grupos que apoiam
e votam no MPLA. Os outros são estranhos, excluídos, quando não são perigosos e
alvos a abater, como Manuel Ganga, pela ousadia de colar uns cartazes a exigir
justiça!
Dias antes do
funeral, de visita à África do Sul, fui ao Soweto e revisitei as minhas imagens
da adolescência, através dos memoriais, sobretudo o de Hector Peterson. A 16 de
Junho de 1976, a polícia do apartheid abriu fogo contra centenas de estudantes
que protestavam. Há uma foto de um adolescente a levar o corpo de Hector, de 13
anos, nos seus braços, e a irmã deste atrás. A polícia matou-o a tiro.
No funeral de
Manuel Ganga vi, naquele momento, um ajuntamento de pessoas dispostas a
resistir e, com os mesmos olhos, vi uma Polícia de Intervenção Rápida disposta
a matar cidadãos indefesos que, pacificamente, entoavam cânticos de protesto
contra o presidente, o responsável moral pela morte de Ganga.
Depois de tudo o
que os angolanos passaram, incluindo a sua participação sangrenta na luta
contra o apartheid, e a trajectória actual da África do Sul, pensei como a
opressão continua a dominar a relação entre o governo e o povo angolano.
No memorial
dedicado a Hector Peterson, no Soweto, inaugurado por Nelson Mandela, há uma
inscrição “em memória de Hector Peterson e todos os outros jovens heróis e
heroínas da nossa luta, que deram as suas vidas pela paz, liberdade e
democracia”.
Na sua mensagem
de condolências pela morte de Mandela, o presidente José Eduardo dos Santos
descreveu-como como aquele que “foi e é ainda símbolo carismático de todos os
povos amantes da Paz, da Liberdade e da Democracia”.
Num momento em
que o mundo inteiro presta homenagem a Nelson Mandela, e celebra a sua vida e
obra, devemos aproveitar o momento para reflectir sobre o legado deste ícone da
humanidade.
Pude entender as
inscrições, no memorial de Hector Peterson, sobre a paz, a liberdade e a
democracia, na África do Sul. O povo negro sul-africano sempre manifestou um
grande sentido de esperança e, independente dos movimentos de libertação,
sempre se manifestou nas ruas para transformar essa esperança em realidade.
Mandela, com os
seus actos de resistência, antes e durante a sua detenção, foi o símbolo maior
da esperança dos sul-africanos pela liberdade. Com a sua libertação, Mandela
serviu como o maior catalisador para o perdão, a unidade, a reconciliação, a
humildade política, a democracia e a liberdade. Acima de tudo, Mandela
empoderou o seu povo com ideais e valores políticos e morais que sobreviverão
aos tempos e aos políticos predadores.
Os angolanos
nunca tiveram esse grande sentido de esperança, para além da sua militância em
torno dos movimentos de libertação que, por sua vez, eram monolíticos e
exclusivistas. O regime do MPLA mantém, em 38 anos de poder, essa cultura
monolítica e de exclusão. José Eduardo dos Santos, nos seus 34 anos como
presidente, apenas exigiu e sacrificou o povo. Despojou-o do poder da
cidadania, de valores políticos e morais, e corrompeu profundamente a
sociedade. Hoje, o angolano não consegue contemplar uma vida melhor sem ser
corrupto. Dos Santos tornou-se o símbolo maior, o exemplo a seguir nos caminhos
obscuros e destrutivos da corrupção e da violência política. Os políticos e
intelectuais que o seguem são formatados, unidimensionais, desligados da
realidade do povo, resignados e contentes por estarem do lado do opressor e das
riquezas. Pior ainda é a promoção e a celebração da mediocridade, como métodos
populistas de mostrar à população que não precisam de boa educação e de
valores. Qualquer um pode ser dirigente, rico e poderoso como Bento Kangamba e
Bento Bento, figuras extraordinárias do MPLA de hoje. É assim que se aniquila a
inteligência de todo um povo, o crime maior da actual liderança angolana, que
continua o seu trabalho de inferiorização do povo, a mesma estratégia usada
pelos então colonialistas portugueses. Hoje, os discursos nacionais cingem-se a
números, estatísticas e edifícios. A insensibilidade dos dirigentes há muito
que os cegou na sua visão sobre o que é liderar e educar um povo. Por isso
temem o povo e julgam poder controlá-lo apenas através da divisão e da
violência.
Por isso, as
palavras de paz, liberdade e democracia, no tributo de Dos Santos, não
reflectem o seu comportamento ou os valores em que acredita. São apenas
palavras diplomáticas.
Na África do Sul,
a esperança tem estado a dar lugar a uma crescente frustração por causa do
aumento das injustiças económicas e do distanciamento da elite negra governante
do povo em geral. Infelizmente, muitos políticos sul-africanos seguem agora os
exemplos das lideranças corruptas africanas. Hoje, na cerimónia fúnebre de
Mandela, os milhares de cidadãos presentes ovacionaram, com grande emoção,
vários líderes mundiais, mas vaiaram o seu próprio presidente. Todavia, os
profundos alicerces da paz, da liberdade e da democracia garantem aos sectores
descontentes da população a tradição e o direito de se exprimirem e de
continuarem a manifestar-se sem medo.
Em Angola, os
excluídos e os descontentes, que são a maioria, carecem de sentido de esperança
e solidariedade colectiva. Remetem-se à sobrevivência individual, à margem da
sociedade, perpetuando os ciclos da exclusão, do medo e da corrupção. Acima de
tudo é uma questão de liderança.
Mandela foi uma
inspiração para a bondade entre os homens. Como bem disse Barack Obama, “nós
perdemos um dos mais influentes, corajosos e profundamente bondosos seres
humanos”.
Angola, no seu
espectro social e político, é um deserto no que toca a homens corajosos e
bondosos, capazes de corporizarem o sofrimento da maioria dos angolanos e
mostrar-lhes outros caminhos que não os da corrupção e das políticas de
exclusão e do medo.
Todavia,
situações extremas como a de Angola e a do povo angolano tendem a produzir
também soluções extremas e inesperadas.
Que a vida de
Nelson Mandela seja um apelo aos homens e mulheres, em Angola –
tocados pelos
espíritos da bondade e da coragem – para que se levantem na defesa de uma
Angola onde os cidadãos sejam humanizados e educados para o bem comum. Só assim
os conceitos de paz, liberdade e democracia terão significado real e prático na
vida de todos os angolanos e Nelson Mandela viverá entre nós, feliz.
By Rafael Marques
de Morais - December 10, 2013
Retirado de Maka Angola, com a devida permissao dos responsáveis do site.
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